A preparação
A preparação: Parque nacional de Itatiaia
Uma das primeiras providências que tomei foi procurar a turma que é do ramo. Cheguei ao Airton Ortiz através de seu livro NA ESTRADA DO EVEREST e ele me deu a dica para inscrever-me numa lista de discussões sobre montanhismo: montanhismo@grupos.com.br. Botei uma singela mensagem dizendo ao grupo que eu estava me preparando para o Himalaia e queria saber por onde começar, perto de São Paulo.
Várias dicas chegaram imediatamente, e o Guilherme Rocha, do Rio, me deu as coordenadas para entrar em contato com o Alberto, que é de Itatiaia e costuma trabalhar como guia para pessoas que querem fazer as caminhadas pelo parque. O contato com o Alberto (024 3352 -1043) foi rápido e objetivo. Logo eu estava saindo de São Paulo, num sábado às 5:30 da manhã, acompanhado do Carlos Morey, outro amigo descoberto através do mesmo grupo de discussão. Fomos a Itatiaia e subimos no Agulhas Negras.
Para mim, que era marinheiro de primeira viagem, foi o máximo. Quase deixei as tripas na rampinha e no rampão do Agulhas… minhas pernas não acreditavam que aquilo pudesse existir. Foi meu primeiro contato pra valer com o montanhismo.
Sentado lá em cima, no meio do caminho para o pico, comendo um sanduíche e olhando aquela imensidão, com aquele silêncio, aquela paz… sensações estranhíssimas e novas.
Me dei conta de coisas nas quais nunca havia pensado. Como o tempo é relativo nesses lugares. Estamos aqui e vamos chegar até ali. O que parecia um pulinho de 5 minutos, leva uma hora…. E se a dimensão tempo é relativa, a noção de distância vai para o brejo. As montanhas e pedras são tão grandes que a gente perde a noção de perspectiva, de tamanho. O que parece pequeno é gigantesco. E no Himalaia, é isso mesmo, vezes 100….
Treinamento em Itatiaia
Acertei um esquema com o Alberto, de pelo menos uma vez por mês dar uma corrida a Itatiaia. Eu não tinha tempo para dedicar ao treinamento. Consegui numa oportunidade fazer Prateleiras e na outra, quando tentamos a travessia de Serra Negra, pegamos um chuvão brabo que jogou por terra nossos esforços. Três idas a Itatiaia. Três trekkings curtos de um dia, um dia e meio. Foi tudo que eu consegui fazer para me preparar para o Himalaia.
Por outro lado, quando acertei o pacote eu já estava fazendo academia, exercitando-me com um personal trainer, o Niels. Mostrei a ele o que eu queria fazer e ele montou um programa com três treinos por semana. Musculação, resistência, força e aeróbica. E Itatiaia foi importantíssimo para mostrar onde é que eu devia focar no trabalho muscular. Perdi 9 quilos de gordura e ganhei 5 de massa muscular. Ficou bom, mas faltava a parte aeróbica.
Manifestei minha preocupação ao Airton Ortiz e ele saiu-se com a seguinte pérola: não se preocupe com a forma física. A trilha do Everest é uma questão de cabeça: se a cabeça está boa, você consegue. Achei esquisito mas tive dezenas de oportunidades para comprovar que o Ortiz estava certo.
Vi gente que aparentemente não subiria uma escada, fazendo a trilha do Everest. Homens e mulheres com mais de 70 anos. Uma senhora, sexagenária, com uma perna mecânica. Gordos e magros, jovens e velhos, tinha de tudo, cada um tentando chegar ao seu Everest.
Foi aí que descobri que cada um faz seu Everest ser mais difícil ou fácil. Cada um fixa seus limites. Cada um define os extremos a que pode chegar. Cada um é responsável, conscientemente ou não, por fazer da trilha para o Everest uma caminhada ou um inferno. Mas bem ou mal, durante um ano me preparei. Faltou fazer a parte aeróbica. Caprichei nos músculos do braço e antebraço, que me dariam empuxe com o bastão de trekking. Caprichei com as pernas, com as coxas, com a batata das pernas. Não me tornei um atleta mas perdi aquele formato executivo arredondado.
Nunca estive tão bem e, só por isso, a viagem já teria sido um sucesso mesmo se eu não tivesse passado de Kathamandu.
DIÁRIO 1: 29 DE MARÇO ATÉ 03 DE ABRIL DE 2001
AEROPOTO DE CUMBICA- 5:45 PM
Pronto! Quem diria! Acabo de chegar de Florianópolis onde dei uma palestra ao meio dia para 300 pessoas. Troquei de roupa no Aeroporto e já embarco para Johannesburgo. Nem parece que estou indo para o Everest! É curioso imaginar que um ano atrás este dia não passava de um sonho distante. Uma bravata tipo : ” um dia vou prá lá” ….
Pois é. Achei que ia, e vou!
A primeira parte da viagem foi muito legal: descobrir detalhes, conhecer pessoas, ficar indeciso diante de tanta coisa diferente prá decidir, prá comprar. Um mundo novo cheio de opções.
Descobri por exemplo, que para comprar a bota eu deveria ter feito um mundo de testes que eu nem imaginava. Comprei aquela que tinha…
Marinheiro de primeira viagem….
E como é gostoso ver a expressão no rosto da turma quando eu dizia que estava indo para o Everest.Para o Nepal. Para Kathmandu.
Nomes mágicos, com uma sonoridade diferente, imediatamente remetendo a gente para: AVENTURA..
E o conflito de deixar a família para trás? Por mais cuidado que eu tomei, tem um risco de vida embutido nesta aventura, que não tem como evitar. Mal de altitude, acidentes, clima político…afinal, eu não estou indo pra Disneyworld onde tudo é controlado.
Nunca vou entender como a Denise, minha esposa desde 1982, aceitou esta minha loucura….
OCEANO ATLÂNTICO – 8:00 PM
Dentro do avião, com 2 garrafinhas de vinho tinto sul africano.
Andei olhando os mapas e descobri que o vôo São Paulo / Johannesburgo é MENOR que o vôo Johannesburgo ; Bangkok. São 7.463 km contra 9.008 km! É mole?
E eu que sempre imaginei que a Tailândia era uma ilha ou um arquipélago, descobri que fica no continente. Santa ignorância.
Andei pensando a respeito desta viagem e de minha decisão de fazer esta loucura sozinho.
Acho que é igual a quando decidi, em 1974, aos 18 anos de idade, que sairia de Bauru para estudar em São Paulo. Saí sozinho e fui fazer minha vida. Até hoje não encontro explicação para aquela atitude (não me arrependo nada). E agora vou outra vez no impulso. Engraçado, né?
Não tenho certeza de nada do que vai acontecer. Consigo me imaginar chegando até Lukla e PENANDO para chegar em Namche Bazaar. Dali prá frente é uma incógnita. Será que terei pulmão para seguir adiante? Será que terie JOELHOS e conseguirei encarar a altitude? Seria o máximo chegar ao Campo Base. A sorte está lançada. Vamos ver no que vai dar.
Ver minha Denise chorando no aeroporto é estranho. É uma forma arrasadora de dizer ” te amo” . E me balança pois ninguém me obrigou a ir…eu nem precisava ir….
QUASE NA ÁFRICA – 1:35 am
Tentei dormir de forma a prejudicar as costas o mínimo possível. Uma semana antes do embarque dei um mau jeito nas costas que me colocou de cama…
Como é possível em pleno século XXI ainda existir algo tão primitvo como estas poltronas sem vergonha de avião?
Começa a nascer o sol lá fora. Não tenho idéia de que horas são na África. Do meu lado um indiano que não emitiu um ruído siquer. Não levantou, não falou, não nada…talvez seja melhor assim.
São 5 horas de diferença para o Brasil. Em São Paulo são 3 da madrugada, aqui 8 da manhã. E acabei me esquecendo do meu livro TREKKING IN NEPAL HIMALAIA do Lonely Planet. Não faz mal….eu já tinha quase que decorado ele mesmo….
Vamos pousar. Minha primeira passagem pela África.
JOHANNESBURGO
O Hotel é muito legal. Fiquei no Holliday Inn Aeroporto, por conta da CIa aérea, já que tenho que pegar novo vôo para Bangkok amanhã. O serviço é uma merda, mas os preços são bem em conta, e o hotel tem até internet no quarto (que depois descobri que não funciona).
O mico do dia: fiz amizade com outro brasileiro e resolvemos ir juntos fazer um safari por um parque de animais, a Lion & Rhino Reserve. Na África. Imaginem só o que a gente não ia ver. Foram 50 dólares jogados fora numa espécie de Simba Safari gigante. Tão grande que não dava prá ver os bichos de perto. Rinocerontes? Só um ponto marrom lá no horizonte. Cachorros do mato, leopardos e Coca Cola. Foi só o que deu prá ver, na maior roubada do dia….
Voltamos pro Hotel às 1:30 pm. almocei e dormi até as 4 da tarde, tentando recuperar os fusos perdidos.
De Johannesburgo, só o aeroporto e o hotel. Aliás, o aeroporto é uma beleza. Tem uma loja lá, já na área do free shop, chamada OUT OF AFRICA. É para ficar louco. Os preços não são os mais baratos, mas mesmo assim muito acesspiveis. Comprei um chapéu de couro feito à mão, que me acompanharia o tempo todo, e paguei 19 dólares. Uma pechincha dada a qualidade do material. Também aproveitei prá comprar um cd player por 70 dólares. Esse cd seria responsável por alguns dos momentos mais marcantes da viagem. Aliás, é peça indispensável do equipamento de trekking, viu?
BANGKOK
Que porre! Mais de 9 horas de viagem, um saco! Valeu pelos Cds do Raul Seixas e do Caetano Velloso que pude ouvir com muita atenção. O Raul tinha uma irreverência inimitável. Irônico e alucinado. As músicas, quanto mais velhas ficam, melhores parecem soar. E Caetano e Gil cantando ” A tristeza / é senhora / desde que o samba é samba / é assim…” não tem prá ninguém. Enquanto isso, no Brasil o lixo do Bonde do Tigrão faz a cabeça da nova geração. Coitados.
Fiz a reserva do hotel de Bangkok pela internet (www.planetholiday.com), tudo no escuro. No aeroporto, descobri que o hotel tinha uma van, que veio me buscar e pronto. Em casa! Tudo certinho, a reserva lá me esperando. O hotel foi o Quality Suites Airport. Custou menos de 50 dólares. Não tem nada a ver com o Holiday Inn, mas para o que eu queria estava bom demais.
O que chamou a atenção, logo de cara, foi a beleza das mulheres tailandesas. É uma beleza asiática, dos olhos puxados, mas é diferente da japonesa, da chinesa, da coreana. Tem um lance de pele escurecida…muito bonitas mesmo.
Entrei no hotel e fui dormir, com o fuso confuso. Acordei lá pelas 4, 5 da tarde com uma puta explosão do lado de fora. Logo depois outra, e um alarme começou a tocar. Fui ver o que era. Era um trovão. O Brasil é abençoado mesmo….só quem ouviu um trovão em Bangkok sabe o que deve ser uma tempestade práqueles lados….
Em Bangkok começou minha preocupação com o nariz e garganta, que me acompanharia por toda a viagem. Era muito ar condicionado e seco de avião. O nariz ficava ressecado, a garganta arranhando…isso iria me complicar no Himalaia. Principalmente porquê eu já chegaria em cima da hora, não daria nem para me aclimatar a Kathmandu.
BANGKOK / KATHMANDU
Estou na sala VIP da Star Alliance. É nesses momentos que a gente dá valor aos cartões de fidelidade… O aeroporto de Bangkok é bem grande. Mas completamente diferente daquela coisa arrumadinha, estilo europeu/americano de Johannesburgo. Aqui já começa a confusão asiática. São dezenas e dezenas de lojas de free shop prá todo lado. Não comprei nada, mas me deram a dica de que para comprar aqui é um saco. Tem que pagar num lado e ir retirar a mercadoria no outro…é meio doido.
Comecei a ver a fauna circulante aqui. Um mundo de mochileiros indo prá todos os cantos da Ásia. Conheci um que veio do Alaska para fazer trekking no Nepal. Só não vi brasileiros.
No aeroporto, tem algumas salas para massagens nos pés. Você entra, tira o sapato e compra 15,30 ou 60 minutos de massagem nos pés. Quem fez diz que pode ser extremamente dolorida, mas que é muito relaxante. Acho que vou precisar quando voltar do Himalaia….
Portão de embarque para Kathmandu. Vôo da Thai. Um barato! Só mochileiro prá todo lado. Um monte de gente parecida comigo. Dezenas e dezenas de mochilas, botas de trekking, roupas especiais, bastões….eu tou chegando lá!
Muita gente da minha faixa de idade. Eu com a camiseta da Mountain Madness chamo a atenção de um sujeito que vem falar comigo. É um dos fundadores da Mountain Madness. Impressionante a quantidade de mulheres viajando sozinhas ou em duplas.
E o nariz e a garganta? Raspando. E as costas? Doendo. E continuam chegando os mochileiros.
CHEGANDO EM KATHMANDU
EU VI! EU VI! Pela janelinha do avião, o Everest lá diante. Majestoso. Com a pluma de cristais, confundindo-se com as nuvens. O avião inteiro vem prá janelinha. Dica: eu reservei no Brasil um assento do lado direito do vôo Bangkok / Kathmandu, pois sabia que a visão do Everest ia ser ali. Que máximo!
DIÁRIO 2: 03 DE ABRIL
KATHMANDU
Cheguei em Kathmandu no dia 3, lá pelas 4 da tarde. Aproximadamente 9 horas de diferença para o Brasil (tem uma quebra de fuso de 15 minutos aí que não dá prá entender). Aliás, em Kathmandu eles tem a contagem de ano deles. Estão no ano 2058…
Fiquei no hotel Yak & Yeti. Um antigo palácio, majestoso, maravilhoso. Só o hotel tinha 100 anos de história.
Durante a tarde dei uma escapada para comprar algumas coisas que me faltavam. Eu estava especialmente atrás de uma calça impermeável. Em São Paulo, chegaram a me pedir R$ 600,00 por uma com Gore Tex, isso e aquilo. Um absurdo que me recusei a pagar. Em Kathmandu, onde quase tudo é falsificado, comprei uma legítima THE NORTH FACE falsa, com um acabamento primoroso e paguei 10 dólares. Eu disse dez dólares. Vinte reais.
Aliás, essa é a dica mais interessante: dá prá comprar de tudo em Kathmandu. Exceto as botas, é claro, que tem que ser muito bem amaciadas antes da viagem. O resto, tem tudo lá, a preço de banana. Inclusive equipamentos não falsificados. Dá para montar todo o circo pagando 1/5 do que custaria aqui no Brasil ou mesmo nos EUA. Mas normalmente, quem faz essa viagem já tem a mioria dos equipamentos. E quem não tem, não quer correr o risco de não achar por lá. Aí o negócio é freqüentar as Pé Na Trilha, Acampamento Base, Aventura, Half Dome…
No jantar, fui conhecer a turma toda. Éramos em 4 trekkers, um guia e um monte de sherpas e carregadores ( em alguns momentos chegaram a ser 20), que a gente não via. Conosco estavam sempre 5 ou 6 sherpas e o resto da estrutura estava indo na frente ou atrás.
O Guia, Blake Larsen, revelou-se ótimo. Sujeito simples, de uma paciência imensa, extremamente atencioso, nos deu todo o suporte possível. Quando precisei achar um dentista em Kathmandu para uma emergência, ele acertou todos os detalhes e até mesmo pagou a conta até que eu trocasse o dinheiro. Nos deu informações preciosas, nos levou para todos os lados. Com o Blake senti a diferença de ter adquirido um pacote com a Mountain Madnesss.
Outro trekker era o Dr. Bernie Dahl. Médico patologista, palestrante, humorista e consultor americano. Com 62 anos e muitas trilhas no curriculum. Fez o Kilimanjaro, quase chegou ao cume do Aconcágua, entre outros. Uma figura excelente, meu companheiro de barraca. Grande piadista e motivador. Fez a trilha direitinho, só não tentou o Kala Pattar.
Também no grupo estava o Eric Riddler, americano de Jacksonville na Flórida. Com 28 anos, é analista financeiro e acostumado a fazer trekkings pelos EUA.
Completando o grupo, a Holly. Também de Jacksonville, dona de uma empresa de consultoria em telefonia, com vinte e poucos anos e também experiente em trekkings.
Eu era o único da lista com um curriculunzinho besta: três trekkings em Itatiaia…e recorde de 2.700 metros de altura.
Depois do jantar fomos até o Thamel, bairro cult de Kathmandu. Comprar um agasalho e uma garrafa para xixi. A garrafa quebrou um galhão. Evitou que eu saísse na neve para fazer xixi durante a noite. E o agasalho foi minha salvação. Paguei menos de 20 dólares por algo que no Brasil teria custado 100.
Conhecemos durante o jantar o Rili Sherpa, dono da Mountain Madness no Nepal. Uma simplicidade só. Ele vai para o campo base em duas semanas, escalar o Everest junto com uma expedição canadense que a Mountain Madness está suportando. O cara está indo escalar o Everest, é mole?
Valem algumas observações: Kathmandu é igualzinho àquilo que a gente vê nos filmes. É uma imensa zona. Cores, ruídos, aromas….o trânsito é algo absolutamente caótico, que acaba funcionando porquê todo mundo é caótico. Prá complicar a direção é do lado esquerdo. Carros, caminhões, bicicletas, motos, riquixás, tuk-tuks (aquela espécie de lambreta com capota), pedestres e bois e vacas. Tudo misturado, em movimento. Todo mundo buzinando o tempo todo. Um caos. Inimaginável e absolutamente maluco. Imagino que, se para mim foi um choque, o que não terá sido para os americanos….
Logo mais vou colocar neste texto uma apresentação mais elaborada sobre Kathmandu. É um capítulo à parte.
DIÁRIO 4: 5 E 6 DE ABRIL
NAMCHE BAZAAR
O dia começou de forma interessante, ainda em Pahkding. Foi nossa primeira noite em barraca, primeiro contato com um saco de dormir para 20 graus negativos. A noite foi uma tortura, com a porra do saco me apertando. Eu ainda não tinha as manhas, deitei cheio de roupas, fechei o ziper e fiquei lá, como uma múmia. Não conseguia me mexer, nem me virar….que tortura. Custou para aprender que não tinha que deitar cheio de roupas. E que bastava colocar as garrafas de água quente dentro do saco, dormindo abraçado e com os pés nelas, que não tinha problema de frio. Mas até aprender, foram umas 4 ou 5 noites….
Despertamos às 6 da manhã com algo que seria a rotina. Dois sherpas na porta da barraca: “Excuse-me. Hello. Tea ready!”. Uma rotina que se repetiria por toda a viagem. Essa frase e os sorrisos tinham a mágica de nos despertar com bom humor, não importa se debaixo de sol, chuva ou neve. O astral dos sherpas é algo inigualável.
Não me perguntem porquê, mas eu achava que minha viagem iria apenas até Namche. E fim. Eu achava que não teria pulmões nem músculos para encarar mais de 4 mil metros. E tinha uma grande expectativa sobre Namche, a capital sherpa do Khumbu. A caminhada até lá é um desafio. Andamos por três horas até o local de almoço, no meio de umas pedras às margens do rio Dudh Kosi – Rio do Leite – com suas águas claras, vindas das geleiras do alto Himalaia.. Dali prá frente foram duas horas pelo menos, prá cima. Eu pensei que sabia o que era uma subida. Mas aprendi rápido que, no Brasil, a gente só tem lombada. Subida é aquilo lá… Já na casa dos 4 mil metros. Inacreditável. Quase deixei as tripas no caminho.
Durante a caminhada de Pahkding a Namche fomos tomando contato com vários ícones do Himalaia. As imensas pedras com as escrituras Budistas, por exemplo, as MANI stones. MANI significa ” jóia” em sânscrito. E as inscrições são orações. Um mantra é o mais comum: OM MANI PADME HUM! (Oh, Deus sentado na posição de lotus da jóia celestial), que inclusive nos acompanharia durante toda a viagem pois um CD (Tibetan Incarnations) estaria tocando em todas as lojinhas do Nepal.
Na entrada do parque. E não é que eu estava lá mesmo?? Um momento especial foi quando chegamos à entrada do SAGARMATHA NATIONAL PARK. O parque onde estão as maiores montanhas do mundo. Guardadas as proporções, era nossa bilheteria da Disneyworld…só que tudo ali era de verdade. E não tinha ninguém cuidando da gente. WILD! Nossos guias pagaram as taxas necessárias e pudemos então realmente começar nossa jornada. Que começa com uma puta descida ( e cada descida que a gente enfrentava era uma preocupação, pois na volta aquilo seria uma subida….).
Outros ícones aparecem: as pontes suspensas. Algumas dão um frio na barriga, mas a maioria está muito bem cuidada. Mas são fantásticas. Com o tempo, passamos a odiar as pontes, pois sabíamos que depois de cada uma delas vinha uma PUTA subida… Aliás, essa é a característica mais interessante da trilha. Se você olha no mapa, a trilha é curta, parece fácil. Mas o mapa não mostra os sobes-desces. Um quilômetro no mapa pode facilmentre transformar-se em 4 quando você tem que descer e subir uma encosta infindável. Engana.
No meio do caminho, numa curva estratégica, a gente tem a primeira visão do Everest. Cheguei nesse ponto arrastando a língua no chão. O pessoal me chamou prá ver o Everest e eu me recusei. Não tinha condições físicas de apreciar coisa nenhuma…esperei o fôlego retornar e só então fui ali olhar. Entre as árvores, lá estava ele outra vez. Muito mais perto. Majestoso. A pluma de cristais…só aquela visão valeu a viagem.
Eu estava numa condição física tão deplorável, que tive que pedir ao Tseering, nosso sirdhar, que carregasse minha mochila. Não teve jeito. Eu tinha é que chegar, independente de carregar a mochila ou não.
Nesse ponto, conhecemos a Alicia, uma uruguaia que estava na Trilha do Everest pela segunda vez desde dezembro do ano passado. Cruzamos com ela pela viagem toda, e esse foi um fator motivador para todo o grupo. Alicia contou que em dezembro do ano passado, naquele mesmo ponto a caminho de Namche, ela parou e desistiu. Precisou que arrumassem um cavalo para ela prosseguir até Namche, pois não tinha condições de seguir adiante. Acabou ficando uma semana em Namche e voltou prá casa frustrada, decidindo que tentaria outra vez em dois anos. Pois 4 meses depois lá estava ela. Dessa vez, sem cavalo, seguindo devagar, sozinha com seu guia. E chegou até onde ela queria: no Kala Pattar. Foi um exemplo de como é possível chegar, bastando conhecer seus limites, seu ritmo e determinar seu tempo. Pois bem. Aí, numa curva, aparece a beiradinha de Namche Bazaar. Era a primeira visão de uma vila que, pelo menos na minha cabeça, tinha um sentido místico. Era a capital sherpa da região do Khumbu. Todos os livros que li sobre o Everest mencionavam Namche. A geografia da cidade é típica: construída na encosta da montanha, é um sobe-desce interminável. Lojinhas para todo lado, milhares de produtos sendo oferecidos. Correio. Telefone. Internet. Padaria (ah…as ” bakerys” de Namche…comi ali uma pizza inigualável).
Namche tem personalidade. Tem um quê de internacional misturado com a cultura sherpa. Uma vila que vive dos turistas. Gente do mundo todo, todo tipo de idioma, todo mundo ali indo ou vindo de algum lugar…por todas as paredes sinais de expedições, de sonhos, de conquistas… Namche é Namche. Não tem nada igual.
Ficamos ali duas noites, como parte de nosso trabalho de aclimatização. Descer até a padaria era uma festa. Subir de volta para as barracas, um martírio. A cada passo, a respiração ofegante buscando mais ar. Tudo em câmera lenta. Namche.
Na primeira manhã, uma surpresa. Abro a barraca e o que vejo? Taí do lado… Dá para acordar de mau humor num lugar desses?
Aí saímos para (prá variar) subir até um ponto de onde dá para ver o nascer e por do sol com o Everest, Lhotse, Nuptse… Outra vez deixei as tripas de fora, mas o lugar é maravilhoso. Tem um Museu Sherpa e uma vista inesquecível, com Everest e seus primos lá no horizonte. Vale MUITO a pena o esforço.
No Museu tem um livro de assinaturas. Dediquei uns 15 minutos prá ver se achava um brasileiro lá. Nicas! Descobri o único lugar do mundo onde brasileiro não vai.
DICA: comprei por 10 dólares um saco de dormir interno, de ” fleece”. É prá usar dentro do outro e ajuda muito contra o frio.
Comecei aqui a sentir meu joelho esquerdo doendo nas descidas. Me preocupou. Eu estava com suporte de joelho, tomando cuidado, mas pelo visto, enfrentar aqueles descidões seria demais para o pobre joelho. Fiquei cismado.
ESCATOLOGIA
ESCATOLOGIA 1: TOILETS.
Minha diferença com o Himalaia. Eu tenho um lance cultural de usar o toilete para meditar, para ler, para passar um tempo agradável comigo. Confortavelmente iluminado, limpo…
Aí comecei a encarar aqueles toilets Brasil 1950. Quando eram bons, tinham uma peça de louça no chão, daquelas onde a gente agacha e manda ver. E do lado um balde com água e uma canequinha. Como é que os caras usam isso, eu nem quis saber.
Só sei que limpam-se com a mão esquerda e por isso essa mão é considerada impura. Não estenda-a a ninguém, não entregue nada segurando com essa mão.
Mas a maioria dos toilets não tem nem essa peça de louça. É um buraco mesmo. E em volta dele um monte de mato seco que os caras jogam por cima da obra.
Mas se você pensa que esse buraco é um buraco negro, com tudo escuro lá embaixo, está enganado. A maioria é um buraco aberto.Iluminado pelo sol. Você olha e vê tudo lá embaixo. Em detalhes. Aquele monte imenso de merda…cada vez que eu olhava, tinha impressão que o monte me chamava: ” Vem, Luciano, vem…”.
Alguém acha que eu consegui usar um desses toilets? Pois acreditem ou não: usei 3 VEZES em 15 dias. Só fui mesmo quando a situação estava miserável, quando eu achava que ia explodir. Mesmo assim, uma vez fui o primeiro a usar o nosso toilet do acampamento (estava limpinho). E outra vez foi no Hotel 8000 em Lobuche.
Tentei desenvolver uma técnica de usar os bastões de trekking para me apoiar. Tortura.
Tentei usar o toilet do Campo Base, mas ele estava completamente cagado. Mais fora que dentro.
Puta que pariu! UMA PRIVADA PELO AMOR DE DEUS!!!!
Olha, se você está lendo isto e pensa em ir prá lá, vá se preparando. Palavras escritas não descrevem o horror, o cheiro, a textura, as cores…argh!!!
DICA: o Blake me deu a dica, que não usei. Disse para levar comigo duas pedras e colocá-las embaixo do calcanhar quando agachar. Assim fica mais confortável. E disse prá nunca abaixar a calça prá baixo do joelho. Se você fizer isso vai mijar dentro da cueca…
E aí vem as histórias do trekker que entrou no toilet no escuro, não viu direito e enterrou a perna até a virilha na merda.
Eu mandava cortar fora!
ESCATOLOGIA 2: ESCARRO.
Ar rarefeito. Frio. Calor. Suor. Não tem aparelho respiratório que resista. Todos os narizes escorrem. Todo mundo acorda de peito cheio. E aí é aquela escarração que não tem fim.
Acordei várias vezes com a sinfonia de escarros dos trekkers, sherpas e carregadores.
Buscavam no fundo do pulmão, e terminavam com uma cusparada que eu nem queria saber onde ia cair…
Que horror.
Mas era a coisa mais natural do mundo, todo mundo escarrando.
ESCATOLOGIA 3: GASES.
Logo no primeiro dia, o Blake nos deu uma aula sobre altitude. Entre os edemas, as tontutas e os vômitos, ele disse que uma coisa ia chamar a atenção: a necessidade do corpo em eliminar gases. Ele colocou que isso era muito natural. Que arrotos e peidos seriam inevitáveis e aumentariam em intensidade conforme a gente fosse subindo.
Foi o que bastou para tornar social, legal, natural e indispensável essa atividade básica do ser humano.
Não tenho por hábito anunciar em público essa manifestação e também não me sinto confortável com quem transforma os gases e seus ruídos em apresentações públicas.
Pois passei quinze dias em meio a uma orquestra peidofônica. Fazer o que?
ESCATOLOGIA 4: MERDA
Tem tanto Yak andando e cagando nas trilhas, que em determinados trechos a gente passa a andar virtualmente sobre uma trilha de merda.É impressionante!
Os Yaks cagam em qualquer lugar. Parados, andando, no alto da montanha, na água, no gelo…a gente tem que ficar esperto para não atolar na merda.
Eu deduzi que, na trilha do Everest, ninguém precisa de guia. É só seguir a merda.
Identificamos vários estados da merda
01. Merda fresca 02. Merda seca 03. Merda molhada 04. Merda amassada 05. Merda flutuante 06. Merda memorial (sim. Uma coluna de gelo com um monte de merda em cima. Parecia o monumento à merda do Himalaia). 07. Merda em brasa 08. Merda em fumaça 09. Merda em pó 10. Merda congelada 11. Merda voadora (aquela que sai debaixo da bota do trekker que vai na nossa frente, direto para a nossa boca ou cara…).
Cara, se um dia você quiser escrever um tratado sobre a merda, faça a trilha do Everest.
DIÁRIO 6: 7 DE ABRIL
TINGBOCHE
Outra caminhada pesada. Mas com uma recompensa na chegada: o mosteiro de Tingboche. Vambora.
Me senti MUITO bem durante essa caminhada. Foi o primeiro sinal de que eu reagiria bem aos efeitos da altitude e que minha aclimatação estava indo bem.
Paramos para almoço no meio do caminho. É interessante como os sherpas começam a servir o almoço. Sempre vem um chá ou um suco. Sempre quente. Chegou uma hora em que meu organismo pedia desesperadamente algum fluído FRIO. Cheguei a comprar e tomar 3 Fantas de uma vez só, pagando 2 dólares cada uma…que desespero!
A trilha é BEM pesada. Subida e mais subida. E depois descida e mais descida.
Foi neste trecho que comecei a compreender a dinâmica da caminhada e acabei encontrando meu ritmo.
Eu usei o chapéu de couro de aba larga que comprei na África do Sul. Quando havia uma subida, e eu olhava para o chão, a aba do chapéu direcionava o meu olhar para o calcanhar do sherpa que ia à frente. Ou para o chão, uns 50 centímetros à minha frente.
Aí eu limpava a mente e me transformava numa máquina de andar. Um passo de cada vez. Curto. E a respiração em sintonia. Aspira. Pé direito à frente. Expira. Pé esquerdo à frente. Cada passo no ritmo exato da respiração.
Isso tinha o dom mágico de me colocar numa ” reduzida” e eu abatia todas as subidas.
Foi quando notei que comecei a me destacar do grupo. A caminhar na frente, a deixar todo mundo para trás. E passei a acionar esse modo ” reduzido” a cada subida, alternando com uma postura mais relaxada nas retas e nas descidas, quando eu aproveitava para apreciar as paisagens maravilhosas.
Encontrei meu ritmo e invariavelmente passei a chegar a nossos destinos ainda com energia para queimar. Foi uma descoberta.
Os sherpas sempre demonstraram interesse por nossas músicas. E sempre que aparecia uma oportunidade, eu empresatava o CD player para eles irem se divertindo. Imagino o que deve ter passado pela cabeça deles enquanto ouviam Caetano, Raul Seixas, Commitments…
No fim da aventura, já em Lukla, acabei dando o CD player de presente para Lukpa, o garoto sorridente da foto ao lado. Ele, com seu bom humor, foi uma alento para os momentos de cansaço. E foi quem me acompanhou até o Kala Pattar. Mereceu. Nem acreditou quando ganhou. Mas mereceu.
A chegada a Tengboche é muito bonita. Passamos por um portal e logo vemos uma ” stupa” (monumentos religiosos que eles constroem em homenagem a seus deuses) muuto bem cuidada. E atrás dela o monastério.
Esse monastério foi destruído por um incêndio em 1989 e ainda está em reconstrução. Encontramos vários prédios novos, um portal recém construído.
E centenas de barracas e de trekkers preparando-se para passar a noite em frente ao monastério.
Ali é um comércio. Com várias pousadas, com barzinho oferecendo de tudo, com ofertas de ” hot shower” que depois de investigar descobri que usa um sistema de ” sherpa hidráulico”. Você encomenda o banho, um sherpa esquenta um baldão de água, sobre no chuveiro e joga dentro de uma caixa. Dali as água sai por gravidade pelo chuveiro e o infeliz turista toma seu ” hot shower”. Com a temperatura externa a 5, 6 graus….
Fomos visitar o Mosteiro. Impressionante. A riqueza de cores, de sons, os monges rezando em voz alta, as imagens dos deuses….aquilo tudo te transporta para outra dimensão.
Desculpem-me, mas meu referencial só pode ser a Disneyworld. Com a diferença de que no Himalaia, tudo é real. Não tem um luminoso escrito EXIT, não tem brigada de incêndio, não tem fila organizada, não tem bilheteria… você está à mercê dos acontecimentos.
Montado o acampamento, nos preparamos para um por do sol cinematográfico.
Ali na frente do Monastério, sentado numas cadeiras, com o CD player tocando a trilha do “Everest” , me preparei para o momento que seria, até então, o ponto alto da viagem.
E não me decepcionei.
A cena do por do sol, do Everest soberano sobre o Lhotse e o Nuptse e com o Ama Dablam do lado direito ” derramando-se” sobre nós…não tenho palavras.
Para sacanear ainda mais, dou um dos fones para o Blake e boto a orquestração de “Here Comes The Sun” do mesmo CD do Everest.
Ninguém precisou falar nada.
Foi o silêncio mais expressivo de minha vida.
Prá mim, se a viagem acabasse ali, naquele momento, eu estava mais do que satisfeito.
Do meu diário, tiro o seguinte texto: “Quanto tempo eu passei imaginando este momento…que não é o principal. O principal será quando eu estiver no cume do Kala Pattar.
Mas o momento agora é especial. Ouvindo a trilha do Everest e assistindo aos raios de sol mudando a cor da montanha. De branca já passou para alaranjada. É só um pedaço de pedra….mas deixa todo mundo hipnotizado. Olho prá trás e está todo mundo em pé, assistindo em silêncio.
E para ficar melhor, surgiu agora de trás das nuvens a lua cheia…dentro de alguns minutos as nuvens vão cobrir tudo e o sol vai baixar completamente.
Este momento valeu a viagem toda!
A temperatura começa a baixar bastante. Minúsculos flocos de neve caem sobre a gente.
Agora o sol baixou e a única montanha iluminada é o Everest.
Estou morto de cansaço, com dores pelo corpo todo, sujo, nariz entupido, saudades dos meus…mas nada disso impede que eu me deslumbre aos pés do Ama Dablam.“
DIÁRIO 7: 7 DE ABRIL
DINGBOCHE
Não levantei muito bem hoje. Tingboche pela manhã parece final de feira no Brasil. Acho que tinha umas 200 pessoas por lá. A partir das 6 da manhã, começa a sinfonia dos escarros. E todo mundo desmontando acampamento para seguir em frente. O movimento é febril e tomamos nosso café da manhã no meio dessa zona toda.
Estou com o estômago meio embrulhado.
Caímos na trilha. Pegamos uma tremenda descida…não pude deixar me preocupar com a subida da volta.
No caminho paramos num mosteiro de freiras. Pequeno, simples e pobre. Entramos e ficamos lá sentados assistindo as rezas de quatro religiosas. A reza é hipnotizante, e quando os instrumentos entram, enchendo o ambiente com a música característica, é emocionante.
Depois de uma caminhada de quase três horas, paramos em Shumari para almoçar. Eu não podia nem sentir o cheiro da comida… pensei que ia vomitar.
Perdi completamente o apetite. O Blake acha que é a altitude. Eu acho que é a combinação de falta de ir ao banheiro com não aceitação da comida.
A comida é legal, vem limpa (embora a gente questione a limpeza, considerando as condições em que o cozinheiro trabalha), mas parece que tem algo no tempero, no óleo, que acaba comigo.
Vou indo só de sopinha e de um ou outro ovo aqui e ali. É duro.
E os gringos comendo que nem cavalo…
Passamos hoje a barreira dos 4 mil metros. E daqui pra frente o bicho deve pegar. A segunda parte da caminhada, após o almoço, vai nos levar a Dingboche (4.400 metros). Tem também quase 3 horas. Haja perna.
A caminhada neste ponto é magnífica. O tempo todo temos o Ama Dablam, que é lindíssimo, à nossa direita, como que abençoando a caminhada.
À frente, a pontinha do Everest sobressaindo sobre as outras montanhas. Parece sonho.
Quando ultrapassamos os 4 mil metros, a paisagem mudou radicalmente. Acabaram-se as árvores, a vegetação. Agora ficou tudo marrom e cinza. E pedras. Muuiiitas pedras. Eu não imaginava que caminharia tanto sobre pedras. E isto era só o começo.
O cenário é de desolação total. Seria deprimente se não fossem as montanhas em volta, com suas neves eternas. Não canso de me deslumbrar com a beleza delas.
Me senti meio mal o tempo todo. Está na hora de começar com o Diamox.
DIAMOX
É um diurético. Faz os rins apressarem o funcionamento e a gente urinar mais e mais. Alguém descobriu que ajuda na aclimatação. Tem um lance aí de mudança do PH do sangue, da necessidade de beber muita água e urinar bastante, de ajudar a afinar o sangue, que fica mais grosso na altitude, etc e tal. Não sou expert no assunto, mas o tal Diamox funcionou. Era um de noite e outro logo cedo.
Como tenho um controle muito grande sobre a bexiga, não fui acometido de nenhum acesso de mijo.Na verdade, continuei normal. Mas o mal estar passou e voltei à vida normal.
Só o apetite é que não voltou.
O efeito colateral é um formigamento na ponta dos dedos das mãos, dos pés e de vez em quando no rosto.
Dingboche. O fim do mundo. O lugar me deprimiu muito. Principalmente pela poeira, aridez. A gente com as barracas montadas ali e aquele poeirão horroroso. E um frio de lascar.
Conforme a gente vai subindo, acaba a vegetação. Lenha é artigo raríssimo. Então o pessoal pega bosta de Yaks e bota prá secar. E vai empilhando. Aquilo será o combustível usado para cozinhar, para aquecer.
A bosta trazendo energia.
Mas a fumaceira que faz é algo impossível de aguentar. E é nessa atmosfera esfumaçada, de frio e poeira que esse pessoal leva a vida. Como é que pode?
Tive a oportunidade de conhecer um dos ” lodges” – alojamentos – por dentro. São as casas dos sherpas, com alguns quartos a mais para alugar.
Eles tem a cozinha, que é a área onde está o fogão e aquecedor principal, onde se reunem para conversar. Aí tem um quarto. Com todas as camas alinhadas na parede. Todo mundo dorme ali. 5,8,12 pessoas. Lembrou muito a vida dos esquimós. E são gentilíssimos.
SHERPAS
Tem um lance interessante sobre os sherpas. Eles migraram do Tibet uns 500 anos atrás. E foram morar nas montanhas do Nepal.
A população do país é composta de castas, e os sherpas são uma das castas nobres.
Como o Nepal é uma das únicas nações do mundo que jamais foi dominada por outra nação, eles tem uma relação interessante com os estrangeiros.
Não são servis, nem tem aquela humildade que chega a ser humilhação de outras nações acostumadas as viver sob o jugo dos ” sahibs”.
Eles entendem os estrangeiros como alguém que vem trazer novidades, histórias do outro lado do mundo, dinheiro e cultura. Não como os dominadores.
Então tem o maior prazer em nos servir, e encaram esse servir como sua obrigação. Não entendem quando a gente agradece por algo bem feito. Acham natural fazer bem aquilo que é seu serviço. E desdobram-se em nos dar todo o conforto.
São encantadores em seu comportamento gentil e verdadeiro. E a gente acaba entrando na deles. É impossível não gostar dessa turma.
Encontramos a equipe de canadenses que está aqui suportada pela Mountain Madness. Eles estão em conjunto com a ABC tentando transmitir ao vivo do topo do Everest. Será em meados de maio e o site que trata do tema é o www.steponline.com
Me lembrei de um lance interessante ontem em Tengboche. Enquanto observávamos o por do dol, o Blake apontou uma montanha baixinha que ele escalou no ano passado. Trata-se do Island Peak.
Tem 6.000 metros! Tem práticamente o dobro da altura do ponto mais alto do Brasil e parece um morrinho perto do Everest…é aí que cai a ficha. Estou noutro planeta!
Olha, passei a admirar ainda mais os exploradores que vieram para cá desde o século 19. Os caras eram MACHOS mesmo.Não tinham as trilhas, os acessos, não tinham as roupas e equipamentos, não tinham sistemas de comunicação, não tinham o conhecimento sobre medicina de altitude que temos hoje, não tinham helicópteros para evacuação, não tinham comidas pré-preparadas…
E quase chegaram ao topo do Everest nos anos 20. Os caras eram durões mesmo.
Outra ficha que caiu: todas as dificuldades que passei até agora são só a metade. Vou ter que voltar pelo mesmo caminho…
Outra dica que aprendi: se você estiver com frio dentro do saco de dormir, coma alguma coisa. Uma barrinha energética ou bolacha é capaz de gerar energia suficiente para aquecer o corpo.
Ficamos 2 dias em Dingboche. Um castigo!
E o plano agora é caminhar por 2 ou 3 horas até Dzugla. A turma disse que é pior do que Dingboche…
DIÁRIO 8: 9 DE ABRIL
DZUGLA
Do grupo todo, quem mais passou mal até agora fui eu. Mas conforme o Blake, não tive nada comparado com o que a turma costuma ter como reação à altitude. É que o Diamox só começou a fazer efeito hoje, e devo ir melhorando.
O Blake diz que normalmente ele observa as pessoas e sabe que situação está ruim quando elas praticamente desmaiam dentro das barracas, ainda calçando as botas e com os pés para fora…pensam que vão morrer. Eu não cheguei nesse estado.
Dingboche é tão estranho que acordo de manhã e saio de camiseta. Com o cair da tardem, tenho que botar todos os agasalhos que possuo. E os engraçadinhos aqui disseram que lá prá cima, além disso tudo ainda venta…
Depois de 2 horas e pouco, chegamos a Dzugla. Não sei como um lugar como estes pode ter nome…
São dois lodges. E pronto. A gente arma as barracas ao lado e usa a cozinha deles. Dá prá comprar uma coca cola.
Não estou conseguindo comer nada sólido.
Saímos de 4.400 metros e chegamos a 4.600. Podia ter sido uma baba se não fosse o ar rarefeito, que faz tudo difícil.
A cada dia admiro mais nossos porters. Tem um garoto ali, com uma cara de sofrido, que é uma coisa. Me dá remorso ver minha sacola na cesta dele. Dá vontade de ir lá e tirar…
Quase zero graus e ele de sandálias havaianas, carregando um peso que deve ser duas vezes o dele. E na hora do almoço todos ali, conversando, rindo e cantando…vai entender…
O sol daqui de cima é de lascar. Qualquer pedacinho de pele que fica exposto é tostado.
As barracas, lá pelas 10 da manhã, estão uma delícia de quentinhas. Mas quando o bicho desce…
Estamos indo prá cama, debaixo de neve. Só quero ver como isto aqui vai estar amanhã cedo.
DIÁRIO 10: 11 DE ABRIL
GORAK SHEP
Chegamos por volta das 14:15, depois de um trekking pesado de mais ou menos 3 horas.
O problema foi a elevação e o terreno extremamente acidentado. Mas a visão é maravilhosa. Seguimos ao lado do Khumbu Glacier numa trilha literalmente equilibrando-nos na lateral da montanha. Quem despencasse de lá de cima tinha 100 ou 200 metros para ralar montanha abaixo.
Foi um dos momentos em que me dei conta de que havia sim, risco de vida envolvido nessa aventura. E não tinha ali ninguém para te segurar, para te orientar…era andar com cuidado e atenção.
O glacier é espetacular. Em alguns lugares ele quebra-se, revelando seu interior. O que parecia uma montanha de pedra e poeira, revela uma alma azul. Gelo puro. Com centenas de metros de espessura, de altura, de diàmetro, do que quer que seja…
A única coisa que a gente não vê nesse trecho, é o Everest. Escondido atrás do Lhotse e do Nuptse, que são espetaculares com seus mais de 7 mil metros.
Em determinado momento, a trilha segue por um trecho com bilh…trilh…quinquilhões de pedras empilhadas. Parece uma pedreira, coisa feita pelo homem. De onde é que vem tanta pedra?
E aí começa a nevar….todo o final da trilha é feito debaixo de neve, que vai apertando…apertando…até a chegada a Gorak Shep. Passamos pelos dois lodges e descemos até a planície onde nossas barracas seriam armadas.
De um lado, a subida íngreme para o Kala Pattar. De outro, uma estrada branca de neve que leva ao Campo Base.
No mapa, o Campo Base é perto de Gorak Shep. O problema é que, com o movimento do glaciar, a trilha muda constantemente, e serpenteia para todo lado, ficando comprida e difícil. Serão 4 ou 5 horas de trekking.
Me enfiei na barraca, no saco de dormir e ali fiquei por 2, 3 horas, tentando fugir do frio. E que frio! Lá fora escutei uma turma jogando futebol…pelo barulho dos chutes na bola, não devia ser futebol, devia ser chutebol. Não tive coragem de ir olhar por causa do frio.
Parte de nosso equipamento segue nas costas de Yaks. Temos duas sherpanis que tocam os Yaks. Estive reparando hoje. São jovens e bonitas. Mas logo logo vão estar acabadas e enrugadas com o trabalho que escolheram…mas será que tinham opção?
A noite foi debaixo de neve. E de manhã, quando acordei, o interior da barraca estava cheio de cristais de gelo da minha respiração, condensados e presos ao teto. Qualquer movimento mais brusco gerava uma chuva de gelo na gente…
Acordei com o Tseering me chamando: ” Luciano, come to see Everest”. Saí da barraca e lá estava ele, com os raios de sol vindo de trás…em minutos o sol banhou Gorak Shep. Lindo!
E agora? CAMPO BASE!
DIÁRIO 11: 12 DE ABRIL
BASE CAMP
Depois da noite mais gelada da minha vida em Gorak Shep (quem me salvou, outra vez, foi o saco d´agua fervendo com o qual dormi abraçado…e a garrafa de água idem que coloquei lá nos pés) e de uma caminhada de 4 horas e 15 minutos, atingimos nosso objetivo: o Campo Base.
Saímos para o Campo Base sem o Blake. Ele passou a noite com dor de cabeça e resolveu não subir mais para evitar correr riscos com a altitude.
A trilha é fabulosa.Vai acompanhando o glacier até a cascata de gelo, totalmente tomado por pedras. A gente vai contornado o Nuptse, que é maravilhoso, com um paredão de gelo e o sol brilhando forte o tempo todo. Deu para caminhar com pouco agasalho.
A trilha desvia em determinado momento, encostando no glacier. Na verdade, a gente caminha SOBRE o glacier, uma vez que aqui e ali vão aparecendo os blocos de gelo pelo caminho. Aqui um bloco. Ali um laguinho congelado. Acolá uma pedra suspensa numa coluna de gelo…não tenho palavras.
Quando consegui enxergar o Campo Base, parei para esperar pela turma. O Campo estava logo ali…faltavam só duas horas…
Alias, essa e uma característica interessante do Everest (na verdade, acho que de todas as atividades outdoor). A gente perde completamente a noção de perspectiva, de proporção, de tempo. O Campo Base parecia estar logo ali….e levamos 2 horas prá chegar até ele.
Enquanto esperava a turma, peguei o binóculo, sentei numa pedra e comecei a vasculhar a cascata de gelo. Pronto! Lá estavam eles. Filas de alpinistas descendo a cascata de volta para o Campo Base.
Tudo aquilo que li e vi no cinema estava se realizando. Ao vivo, a cores, diante de meu nariz…
E apontei o binóculo para o cume do Everest. Fiquei ali, viajando, revendo todos os livros que li e filmes que assisti, procurando identificar as formações familiares. Acho que naqueles minutos, escalei do Campo 5 até o pico…
Encontrei no caminho um argentino que trabalha no Aconcágua. Perguntei a ele como comparava este trekking ao Aconcágua. Disse que este trekking era um passeio. Que o Aconcágua é caso sério e que a maioria de mortos lá é de brasileiros que acham que podem chegar e ir subindo.
Bem feito. Quem mandou perguntar?
O Campo Base é uma coisa esquisita. O terreno é tão acidentado que para ir de uma barraca para outra é uma ginástica. Sobe em pedra, desce de pedra, escorrega no gelo, pula a fenda….e assim vai.
Nossas barracas foram montadas num local horrível. Almoçamos numa tenda cujo chão era um mistura de pedra e gelo.
Depois do almoço eu e o Eric, mais Lakpa e Dawa, fomos até a cascata de gelo. Logo ali.
Levou 25 minutos…
A cascata é uma cascata mesmo. Bilhões de toneladas de gelo que escorrem montanha abaixo e depois transformam-se num rio de gelo que é o glaciar. Tudo em movimento, imperceptível é claro, mas em movimento.
De repente um estrondo. Uma avalanche. Todo mundo olhando preocupado prá ver se foi em cima da turma que estava na cascata. Não foi…mas a cena do gelo caindo e aquele estrondo interminável, é impressionante. E a gente ouviria e veria umas 10 ou 12 avalanches durante o tempo em que permanecemos no Campo Base.
KHUMBU ICEFALL
O trajeto no Campo Base até a cascata de gelo é uma viagem. São mais ou menos 200 metros, mas parecem quilômetros. A cada dezena de metros, uma expedição de nacionalidade diferente. Aqui os americanos. Ali os canadenses. Lá diante os indianos com suas tendas arredondadas. Lá atrás, os coreanos. Aqui ao lado alguma coisa que parece russo.
E a gente segue um caminho marcado por bandeirinhas vermelhas até chegar a uma espécie de platô gelado. Na base da cascata de gelo.
Logo ali embaixo, os alpinistas que voltam da cascata estão tirando seus equipamentos de gelo para voltar para suas barracas. Ficamos observando. Gente grande. Pernas e braços longos. Roupas multicoloridas, rostos queimados pela irradiação do sol e do gelo.
Um deles, com uma grande barba branca e aspecto de ter seus 58, 60 anos sobe até a gente e diz:
“Estou morto de cansaço”. Eu pergunto de onde ele veio. E ele diz: ” Nem cheguei ao Campo 1″ …
Ficamos ali observando os caras descendo. Chegar até aquele ponto foi um esforço tão grande e a gente estava com a energia tão baixa, que mal dava ânimo de andar mais um pouco.
Engraçado como hoje, falando assim, de longe, fica complicado entender como é que a gente não conseguiu ir logo ali…só estando lá mesmo para entender o imenso esforço que esse ” logo ali” queria dizer…ninguém mais tinha energia para nada, a não ser observar…
Mas eu olhei ali a cascata…olhei a corda que os alpinistas usam para começar a subida…pensei no esforço que foi sair do Brasil e chegar até ali…imaginei que nunca mais voltaria lá…
Resolvi
.
Desci, peguei a corda e subi até a Cascata de Gelo. Até onde eu deveria estar usando os grampões…ali, onde os alpinistas começam sua aventura pelo Everest…
Eu cheguei lá! Eu estava ali, onde tudo começa, com a Khumbu Icefall inteirinha na minha frente. Aqueles blocos de gelo do tamanho de prédios (os “seracs”)…aquela infinidade de bandeirinhas marcando o caminho….as filas de alpinistas descendo e cruzando as fendas (as “crevasses”) sobre as frágeis escadinhas de alumínio…tudo era verdade e estava ali, ao meu alcance…
Eu estava na trilha de Mallory, Hillary, Norgay, Messner…
Quantos brasileiros fizeram isso? 100? 300? 1000?
EU FIZ!
Uma grande emoção.
Recolhi um monte de pedras ali, para trazer para os amigos. Meu tesouro durante o resto da viagem.
Voltei para a plataforma e começamos a retornar para as barracas. Aquele martírio de sobe e desce, de pisar sobre pedras soltas, sobre gelo…quase caindo…uma dureza!
De repente um tropel e a gente sai de lado. Passam por nós 3 alpinistas que tinham acabado de descer da cascata…passam a 60 por hora. Nem tomam conhecimento do terreno, andam como se estivessem sobre um tapete. Foi quando vi a diferença que é a experiência desses caras. Prá quem desceu da cascata do Khumbu, aquelas pedrinhas eram poeira…
Fizemos a cera habitual, jantamos e fomos dormir. A cada 15 minutos a gente ficava sobressaltado com uma avalanche. Depois acostumamos e dormimos normal…
Na hora que me preparei pra dormir, pensei sobre o local onde eu estava. O ruído das avalanches não deixava dúvidas: aquele lugar estava vivo. Os blocos de gelo estavam se movendo. As fendas se abrindo e fechando. A qualquer momento aquilo tudo pode vir abaixo. E eu estava ali, dormindo sobre aquele terreno…
Bateu um medão ali…mas aí a gente lembra que a coisa lá é assim a milhões de anos. Será que a montanha vai cair justo no dia que eu estou lá? Não mesmo. Então o negócio é dormir.
Agora, abrir o ziper da barraca e dar de cara com a Cascata…olha só a foto aí do lado. Dá prá acreditar?
De manhã aproveitamos para conhecer uns caras. Conhecemos 2 sherpas, um tendo alcançado o topo do Everest 6 vezes…o outro 7…ambos prepando-se para subir outra vez.
Fomos até o acampamento onde estava o Babu Chiri, o sherpa mais famoso do momento, que já havia alcançado o topo do Everest 10 vezes, havia batido o recorde de subida, com pouco menos de 17 horas de escalada, e também batido o record de permanência no topo, com 21 horas! O cara é fera, e estava lá. E o Tseering o conhece.
Quando chegamos ao acampamento ficamos sabendo que ele já havia saído para o Campo 2.
Mal sabíamos que, em duas semanas, Babu Chiri estaria morto ao cair numa fenda enquanto tirava fotos no Acampamento 2…
Fomos então conhecer a barraca de comunicação da equipe canadense que vai tentar o topo em maio, com transmissão direta pela ABC. Pudemos bater um longo papo com Ben Webster, o alpinista canadense que comanda e expedição e que vai para o topo.
Ele nos deu uma aula sobre o Everest.
Primeiro do ponto de vista técnico, contando que a primeira vez que ele subiu a Cascata Khumbu, levou 9 horas. Mais tarde, já aclimatado e conhecendo os caminhos, passou a levar 3 horas. E que um sherpa experiente, leva 90 minutos.
Depois, do ponto de vista psicológico dos alpinistas que vão subir, da dinâmica entre a equipe, dos momentos de pânico e de demonstração do caráter das pessoas. Conforme Ben, no Everest ninguém é ator. Se você é corajoso ou covarde, não tem como esconder. Aí ele fez um paralelo entre a relação das pessoas no dia a dia. Nós ficamos ali parados, ouvindo…atentos…
Boa sorte Ben. Quem quiser acompanhar, entre em www.steponline.com. Meados de maio eles devem estar no topo.
Apontei de novo o binóculo para a Cascata. A atividade logo cedo é febril. Contamos mais de 30 alpinistas subindo. Normalmente em grupos de 4, seguindo a trilha pré-marcada…
Não passa pela minha cabeça escalar o Everest, mas que dá uma invejinha ali, dá mesmo…
DIÁRIO 12: 13 DE ABRIL
GORAK SHEP – KALA PATTAR
Começou aqui a viagem de volta. Que pelo nosso programa, era muito mais curta, em termos de tempo, que a de ida.
O caminho de volta do Campo Base para Gorak Shep era parecido com o de ida, mas desta vez acompanhando o Glaciar Khumbu por sua lateral. Foi uma caminhada extenuante, embora com menos de 3 horas. Desconfio que meu pico de preparo fisico foi ontem, no Campo Base. Daqui pra frente é decadência.
Um comentário interessante, que ouvimos mais de uma vez. Acima dos 4000 metros, o corpo humano começa a deteriorar. E quanto mais alto a gente vai, mais rápido é essa deterioração. Acima dos 8.000 metros, a morte é uma questão de horas. Ali nos 4, 5mil, a gente começa a sentir os efeitos…
Prá ser drástico, o que quero dizer é que acima dos 4 mil metros, a gente começa a morrer devagarinho…
O corpo consome as reservas de energia e depois os músculos…a gente emagrece numa velocidade impressionante. Os alpinistas que permanecem 10 semanas acima dos 5mil metros perdem 20, 30 quilos!
Eu perdi 6…
Chegamos a Gorak Shep. Me enfiei na barraca, dentro do saco de dormir e fiquei ali, extenuado…
Saí para tentar fazer uma ligação telefônica. Para chegar ao alojamento, eram uns 300 metros. Debaixo de neve e frio. Que tormento! Pra descobrir que o telefone estava sem sinal.
Aliás, telefone é um negócio interessante naquelas bandas. De Namche pra cima, são telefones à rádio. Tem que conectar com Kathmandu para dali falar com o mundo. O custo é de mais ou menos 4 a 5 dólares por minuto e a qualidade da ligação é muito boa. Mas tive que tentar ligar várias vezes, pois o sinal de rádio desaparece e os telefones ficam mudos por períodos.
Outra dica interessante. No Nepal, sábado é o dia em que ligações são mais baratas. Então não adianta tentar falar no telefone. E impossível obter linha.
Os joelhos me incomodaram de novo. Me preocupei porque daqui prá frente é descida, e os joelhos são os mais exigidos…não sei no que vai dar.
Outra vez raios e trovões. Gorak Shep é brabo!
Acordei animado no dia 14. A turma resolveu seguir a trilha para Pheriche. Eu e o Eric nos preparamos para subir o Kala Pattar. Seria uma paulada. Kala Pattar e depois trilha direto para Pheriche.
Começamos a subir, o Lakpa, eu e o Eric. Dez minutos depois o Eric desistiu. Desceu para acompanhar a turma para Pheriche. Eu continuei subindo.
O céu estava nublado e o Everest encoberto. Cruzamos com a turma descendo, todo mundo meio broxado pois não dava prá ver nada lá de cima. Mas eu confiei na minha sorte e continuei subindo.
No meio do caminho, subindo pela neve, o céu começou a abrir. A velha sorte não faltou. E logo tivemos a chance de ter uma das vistas mais belas do Everest.
Do meu diário:
“Estou sentado na neve, no meio do caminho, ouvindo a trilha do Everest e observando a montanha entre as nuvens, junto com um casal de australianos e 3 sherpas. Só eu do nosso grupo. Tenho fé que o céu vai abrir e vou ter as fotos que eu queria.
Neste ponto encerra-se uma etapa da minha viagem. Fiz tudo o que eu queria fazer.
O que aprendi de importante: 1. Um passo de cada vez, devagar, mas sempre. SEMPRE. Agregando valor. 2. Passos no ritmo da respiração, sempre ( conhecendo seus limites). 3. Para cada vez que você olhar para cima, prá ver quanto falta, olhe 4 ou 5 prá baixo, prá ver o quanto você já subiu. Motivação.4. Para chegar ao destino, a gente tem que subir, descer, subir de novo, descer outra vez. Descer faz parte do caminho. Não é negativo, não é regressão. 5. Quanto vale um banho? Um chesseburger? Uma privadinha? Um telefonema pra quem a gente ama?
Resolvi descer, pra encontrar o Blake sozinho, sentado à minha espera. A turma se mandou toda.
Fomos até o alojamento e comprei 3 Coca Colas para comemorar.
Interessante. Por causa do Diamox e da altura, o gosto da Coca muda. A boca esta sensível pelo esforço de respirar o ar seco e frio…e a Coca explode, com aquela cafeína toda e o gás. Chega a ser ruim. Mas valeu para comemorar a conquista.
Fui o único do grupo a cumprir todo o programa ! Logo eu que achei que nao passaria de Namche…
Tô feliz.
Vinte minutos de descanso e vamos enfrentar a trilha para Pheriche. Lakpa, o sherpa, Blake, o guia, e eu. Decidimos imprimir um ritmo forte e mandamos bala.
A trilha é complicada. Muita neve, muito gelo, muito barro, muita pedra…
Frio, muito frio. Era preciso proteger a boca e o nariz, que escorria o tempo todo. Levei despretensiosamente um cachecol que foi uma das peças mais importantes da viagem…e eu estava com uma bataclava que incomodava. Quando protegia o nariz, o vapor da respiração embaçava o óculos. Era complicado e eu sentia os lábios rachados e o nariz queimando.
Quando chegamos de volta àquele memorial aos alpinistas que morreram, parecia filme de ficção científica. Tudo branco, a visibilidade baixíssima e a neve caindo…caindo…
Enfrentamos então uma descida horrível, que acabou com meu joelho esquerdo. O final foi dramático, comigo usando os bastões de trekking como se fossem muletas para aliviar o peso das pernas e a pressão nos joelhos.
Paramos em Dugbla para um almoço. Eu precisava de algo GELADO. Comprei uns sucos enlatados ali…parecia que eu ia morrer…mas os minutos parados foram revigorantes. E dois pratos de fritas causaram uma recuperação milagrosa.
A continuação da trilha foi bem difícil. Muita água e lama. E o pior, as rochas e pedras soltas. A gente tinha que ir escolhendo o caminho…as botas ensopadas…
Aí o Blake usou sua experiência. Chegou perto de mim e começou a contar piadas. Eu também contei as minhas. Foi o trekking mais pesado de minha vida, pois eu vinha do Kala Pattar. Mas não me arrependo de nada.
DIÁRIO 13: 14 DE ABRIL
PHERICHE
Com as barracas molhadas pela neve, decidimos ficar num alojamento em Pheriche. Um lodge como eles chamam por lá.
Foi legal porquê normalmente esses alojamentos são casas dos sherpas, com quartos a mais para alugar. A turma, hóspedes inclusive, fica na sala de jantar, em volta do quecedor, secando botinas, roupas, aquecendo as mãos e pés e conversando.
No aquecedor, merda seca de Yak prá queimar. E entra e sai gente o tempo todo. Só sorrisos e simpatia.
Ficamos nós, gringos, sentados de um lado conversando, e os sherpas de outro só observando. E o tempo vai passando.
Uma coisa interessante é a súbita percepção de que estamos ali matando o tempo. Temos tempo prá não fazer nada. Dormimos entre 8 e 10 horas por dia e eventualmente tiramos uma soneca à tarde. Fiquei horas sentado na frente daquele aquecedor, pensando na vida…que diferença do dia-a-dia louco do Brasil…
Nossos carregadores iam sendo dispensados pelo caminho, na medida em que fomos subindo. Um dos únicos que ficou o tempo todo foi uma carregadora. Ela dever ter 1:20 metros de altura. E carrega uma imensa carga, usando chinelinhos e deixando a gente prá trás na trilha. Que coisa!
A radiação solar me queimou o nariz, por baixo e por dentro. Se não vinha do sol, era refletida pela neve. Embora eu estivesse com o rosto todo coberto, com os óculos especiais para neve, o pouquinho de pele que ficou de fora, logo abaixo das têmporas e o nariz sofreram muito. Junto com a boca, que está em pedacinhos…
Aliás, dois de nossos carregadores que não contavam com tanta neve, não estavam usando os óculos especiais e agora estão prostrados com a cegueira da neve. A brancura da neve é tão intensa que queima a córnea. Dizem os doutores que a dor é horrível e, dependendo da intensidade da queimadura, leva de 24 a 48 horas para recuperar.
Não dá prá brincar com a neve quando se trata dos olhos. Por isso não economize nos óculos, com lentes especiais e proteção lateral.
Daqui prá frente, conforme a gente for descendo, a tendência é acabar a paisagem de pedras e neve, para aparecer o verde outra vez. Tomara.
DIÁRIO 14: 15 DE ABRIL
TENGBOCHE
Tinhamos um plano de ir para Phortse, que de acordo com o Blake é uma vila muito bonita, meio fora do circuito tradicional de trekking e que vale muito a pena visitar. Mas os sherpas estavam preocupados com a quantidade de neve e com o estado da trilha. Resolvemos voltar para Tengboche.
A decisão deu um frio na barriga de todo mundo. A gente se lembrava do tamanho da descida que enfrentamos quando saimos de Tengboche, e que agora seria uma subida no final da trilha. Fazer o quê?
Depois de duas horas de trilha, paramos para almoçar em Pengboche. Num alojamento. Ficamos lá sentados com os dois porters com problemas nos olhos deitados como mortos ao lado.
Enquanto aguardávamos o almoço apareceram duas meninas, com seus 9 anos de idade. Graciosas. Dei-lhes um chocolate. Elas vem tímidamente, com as duas mãos em forma de concha e agradecem. Uma em nepali, a outra em inglês.
Um minuto depois tem mais 4 na porta procurando o gringo dos chocolates…
O Blake avisou a gente para não dar docinhos nem dinheiro às crianças, pois isso acaba criando um hábito ruim, transformado-os em pedintes para qualquer estrangeiro. Não foi bem o caso lá, pois não saí dando os chocolates de graça, mas só após conversar com as crianças. De qualquer forma é um alerta.
Visitamos um antigo mosteiro em Pengboche. Na nossa frente um grupo de japoneses. Como são interessantes os japoneses. Primeiro pelas roupas coloridas, câmeras fotográficas e filmadoras de última geração. Depois pela forma como fazem tudo em grupo, tudo certinho…
O mosteiro é a coisa mais velha que já vi na vida, embora tenha apenas 300 anos. Mas está tão judiado e caindo aos pedaços que chega a dar pena. Mas vale a visita, vale observar na penumbra as expressões dos deuses nas dezenas de pinturas e estatuetas. Fascinante.
Retomamos a caminhada para Tengboche. Muito frio ainda.
Quando chegamos na tal subida, o Blake juntou a turma e começou a fazer um jogo de adivinhação de nomes de pessoas famosas. Foi o que salvou. Entretidos com o jogo, enfrentamos a tal subida cheia de lama quase sem perceber. E fiz os últimos 20 metros até a planície do monastério, correndo com o Balke atrás de mim jogando pedras.
Impressionante como a mente pode desviar a atenção da gente a ponto de permitir que o corpo cumpra uma etapa exaustiva quase sem perceber…
Chegamos a Tengboche num final de tarde maravilhoso. O céu limpo, as montanhas brilhando. Muito bonito.
Em 10 minutos desceram nuvens sobre a gente e tudo aquilo desapareceu. Ficou o frio.
Consegui ligar para meu pessoal, que estava em Bauru com toda a família no almoço de Páscoa.
A ligação foi o máximo. O telefone fica numa área restrita do monastério. E tem um monge que cuida dele. Para usar tem que achar o monge e fazer a ligação de seu quarto. Muito legal. No final da ligação ele gentilmente me ofereceu um chá. Que gentileza.
O Bernie aproveitou e foi cortar o cabelo com os monges. É de graça e eles praticamente raspam a cabeça, mas ficou legal. Foi um acontecimento no monastério.
Antes do jantar, um momento especial. O Eric, com todos de mãos dadas, faz uma prece pela Páscoa.
Depois do jantar fomos dormir. Acordei de madrugada com DOR DE DENTE…tudo que eu temia.
Antes da viagem fui a meu dentista e pedi uma revisão completa. Apareceu um problema ali de um cisto que eu teria que tratar cedo ou tarde, mas que não era nada demais e eu poderia viajar.
Pois o tal do cisto resolveu acordar lá nos 4 mil metros…. talvez pela altitude, pelo frio, pela pressão.
Achei que podiam ser restos de comida parada, improvisei ali um fio dental (era madrugada, no escuro e no frio), mas não deu certo.
Acordei de manhã com o som dos gongos do monastério. Eles disseram que teriam uma cerimônia às 7:30 da manhã mas começaram às 6:30. Acompanhei de dentro da barraca os cânticos e as músicas. Não deu prá ir assistir e vou me arrepender pro resto da vida.
Juntamos a turma toda para bater as fotos da equipe. E pé na estrada.
DIÁRIO 16: 17 E 18 DE ABRIL
LUKLA
Pois levou 8 horas!!!
Não pegamos neve em chuva e a trilha não é complicada, mas tem tanto sobe e desce que a gente perde a noção.
No caminho paramos para comer um lanchinho e tomei 3 Fantas. Uma atrás da outra…foram as mais deliciosas de minha vida.
Eu estava voltando à civilização. Os assuntos que a gente conversava incluíam banhos quentes, cheeseburguers…e uma privada.
Paramos no mesmo local onde na ida eu tive que dar minha mochila para nosso sherpa levar. Impressionante a diferença de forma física em que eu me encontrava.
O Everest estava lá para o Adeus. Majestoso, imponente, a nuvem de cristais banhada pelo sol…no headphone ” Morning has broken heart” com o Cat Stevens…inesquecível.
Eu fiz a caminhada num ritmo forte. O Eric não estava passando bem e foi ficando muito para trás. Paramos para esperá-lo mas estava demorando muito.
Tínhamos mais uma subida forte antes de Lukla e decidi dar um sprint final. Botei minha reduzida e matei a subida como se estivesse em linha reta, quase atropelando Dawa, o sherpa que seguia em minha frente. Depois de 8 horas eu ainda tinha muito gás para queimar. Impressionante.
Cheguei a Lukla e fiquei esperando a turma para um abraço. Estava terminada nossa etapa em terra.
Eu havia feito tudo a que me propus. Até mais. Havia ali um gostinho de conquista, de vitória…era algo íntimo, só meu, que de certa forma eu via espelhado nas expressões do Bernie e da Holly. Um certo alívio, um prazer de quem chega ao objetivo.
Eu estava cheio de energia, de experiências, de histórias para contar.
Eu tinha ido até o Everest.
Lukla é interessante. É o ponto de entrada e saída da trilha do Everest. Não tem nem de longe o carisma de Namche. Mas de manhã, quando chegam os helicópteros desembarcando as dezenas de grupos de trekkers que vão iniciar a caminhada, e levando embora aqueles que a terminaram, a cidade fervilha.
É legal ver a turma chegando. Todo mundo limpinho, sorridente, com aquela expressão de ansiedade…
E os que vão. Cansados, sujos, mas com uma expressão de alegria que entrega o que lhes vai pela alma: ” Estive lá…”
Minha frustração: não cruzei com NENHUM brasileiro. Vi Argentinos, Uruguaios, Chilenos e Venezuelanos. Brasileiro nicas.
Mas vai ser interessante quando brasileiros chegarem no hotel 8.000, lá em Lobuche, e derem de cara com aquela bandeirinha do Brasil…
Nos ajeitamos no hotel para passar a noite. Nosso vôo, sem qualquer garantia devido ao mau tempo, sairia na manhã seguinte.
O Lakpa apareceu para me trazer meu saco de dormir. Chamei-o e pedi a ele que escolhesse entre os meus CDs aquele que ele mais gostou. Escolheu a trilha do filme Commitments. Botei o CD no CD Player e dei ambos de presente para ele. Por ter me acompanhado no Kala Pattar, por estar sempre de bom humor, por estar sempre preocupado conosco, com nosso bem estar.
Pela expressão dele, senti que seria o equivalente a um de nós ganhar um carro de presente de um gringo que steve conosco por quinze dias…
Valeu, Lakpa.
Preparamos o jantar de despedida. A porra do meu dente me matando. Eu estava psicologicamente preparado para o mal da montanha, para um edema, para uma perna quebrada, um tornozelo torcido…mas para um dente, não!
O cozinheiro caprichou no último jantar. E comi ali um frango delicioso, mais uma sopa…foi ótimo.
Depois do jantar, chamamos todos os sherpas. Botamos uma rodadona de cervejas na mesa e começou o bate papo. Estávamos desfalcados. O Eric, passando mal, com febre, ficou na cama. E o Bernie, cansado, tinha ido dormir. Ficamos eu, o Blake a Holly, mais uns 10 sherpas, os carregadores e um ou dois curiosos ali.
Logo os sherpas trouxeram seu tambor. O mesmo que nos acompanhou durante toda a viagem e que ditava o ritmo das canções que eles cantavam toda noite.
Cantaram a primeira. Na segunda saíram dançando e logo estava todo mundo dançando a dança dos sherpas. Muito animado…divertido.
Ver aquela turma, alguns dos quais caminharam por mais de 8 horas com uma carga nas costas que era inconcebível para mim, cantando, dançando, pulando…com toda energia do mundo…enquanto minhas pernas reclamavam dos excessos do dia…é impressionante.
Logo alguns hóspedes, atraídos pelo barulho, apareceram e integraram-se à dança.
Foi um barato.
Depois pararam e pediram-nos para que cantássemos uma canção de nossos países. O Blake saiu-se com uma canção de mineiros, do oeste americano. A Holly com um trecho de American Pie. E eu fui de ” Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer café…”
Divertidíssimo.
O local do jantar era uma espécie de danceteria deles. Uma salinha de 4 por 4 metros, teto baixo, e com equipamento de som equivalente àqueles das brincadeiras dançantes que eu participava em Bauru nos anos 70…
Aí botaram umas músicas de danceteria, aquele mesmo lixo que toca nos rádios do Brasil e a turma desandou a dançar.
Fui dormir.
Acordei lá pelas 6 da manhã com o ruído dos helicópteros chegando ao aeroporto. Era hora de preparar-se para ir embora.
Mas o tempo…logo as nuvens começam a baixar e a ponte aérea pára. Sem qualquer sinal de que vamos voar de novo naquele dia.
Frio. Cansaço. Nada para fazer. Chuva. A ordem foi para ficar no quarto ou na cantina., lendo, fazendo cera. Não era incomum passageiros esperando um ou dois dias em Lukla, até ter condições de voar.
E o catso do dente me matando.
Separei e dei para o Tseering o agasalho que eu comprara em Kathmandu, minhas luvas Gore-Tex, um boné, uma camiseta e a calça impermeável que comprei em Kathmandu.
Em Namche, na ida, eu havia dado a ele um pacote com 15 camisas da seleção brasileira. Disse que era para toda a equipe e que em troca eu queria uma foto deles usando as camisas…
Taí
.
E sabe da maior ? Sempre que eu dizia a eles que era do Brasil, ouvia: ” Ah! Brasil? Ronaldo…Romário…”
Hora do almoço. Comida servida. De repente, o ruído de um helicóptero. A ponte aérea está restabelecida. Talvez voássemos naquele dia mesmo. A ordem: ficar de prontidão. E não deu outra.
De repente o Tseering aparece, chama todo mundo e saímos todos para o aeroporto correndo.
Em minutos estávamos a bordo de um helicóptero.
A despedida dos sherpas foi emocionante. A gente sabia que possivelmente nunca mais veríamos nenhum deles…e todos estávamos agradecidos, de lado a lado. Foi uma viagem excelente e eles foram peças chave…
Agora estão lá, do outro lado do mundo, acompanhando outros trekkers.
C´est la vie.
DIÁRIO 17: 19 E 20 DE ABRIL
KATHMANDU e BHAKTAPUR
Dor de dente! Puta que pariu! Eu devia estar dormindo, são 1 da manhã, e não consigo dormir por dor de dente!
A situação está tão crítica que acabo de ligar para o Sergio da Domenico Turismo, para arrumar um jeito de voltar ao Brasil.
Nunca tive dor tão forte e cheguei a me encher tanto de comprimidos, os “pain killers”, que fiquei zonzo.
O Blake foi muito legal, indo comigo ao dentista. É interessante como os caminhos se cruzam. O Bernie é palestrante profissional nos EUA e ontem à noite foi dar uma palestra sobre sua experiência em alta montanha, no Rotary Club de Kathmandu. Conheceu um dentista lá, contou do meu caso e o dentista se propôs a me atender. De manhã fomos eu e o Blake procurá-lo.
O dentista é indiano e fala inglês arrastado. Consegui ser atendido, tirei raio x e o tal do cisto estava lá. Deve te sido acionado pela altitude, pela pressão. Ele disse que o tratamento é complicado e me deu apenas remédios para controlar a dor até eu poder voltar ao Brasil. Disse que, possivelmente, ao nível do mar a dor desapareceria.
Convivi com ela mais uns dias.
Fomos jantar ontem no Fire & Ice, restaurante italiano muito conceituado em Kathmandu, a caminho do Thamel. Espetacular. Mesmo sem poder comer do lado direito da boca, experimentei um dos melhores espaguetes de minha vida. Amatriciana. Inacreditável. Não perca o Fire & Ice de Kathmandu.
Depois do almoço de hoje, no Yak and Yeti, quando mal consegui mastigar 2 pedaços da excelente pizza, fomos a Bhaktapur.
Eu havia acertado esse passeio e convidei o Eric e a Holly para ir juntos. Eles chegaram em Kathmandu no começo da viagem, 2 dias antes de mim, e já tinham visitado todos os templos e atrações mais conhecidas. A visita à Bhaktapur eu queria fazer pois lá foram feitas as filmagens do PEQUENO BUDA, de Bertolucci, e as imagens da cidade são espetaculares.
Foi a maior DENTRO da viagem.
Bhaktapur é maravilhosa, fascinante. Fica a 20 minutos de Kathmandu (digamos que faz parte da grande Kathamandu), é abarrotada de templos muito antigos e caindo aos pedaços.
O pessoal da Mountain Madness nos conseguiu um carro com motorista. Pagamos 600 rúpias no total (menos de 10 dólares) para ir até lá e para que o carro ficasse nos esperando a tarde toda.
Um detalhe: não tentamos fazê-lo, mas pela conversa com o pessoal da Mountain Madness, parece que é impossível alugar um carro SEM MOTORISTA em Kathmandu. As empresas não confiam num turista dirigindo naquela loucura de trânsito…
Bhaktapur é tão fascinante que cheguei a esquecer a dor de dente. Entramos no centro histórico e, em vez de ir direto para os locais turísticos, viramos para a direita e mergulhamos dentro da cidade, andando por becos escuros e locais onde poucos turistas eram vistos. No coração da cidade. Indescritível.
A cidade está literalmente caindo aos pedaços e é isso que dá todo o charme. Tudo de belo que existe são as coisas antigas. De novo, só decadência…
Comprei colchas trabalhadas, maravilhosas, por 50 dólares cada. Comprei estatueta da mãe de Buda, muito bem feita, por 40 dólares….e assim foi.
Em todas as compras, a negociação faz parte. Os caras pedem 200, a gente oferece 100 e aí vai chegando no meio termo.
No meio da cidade, chegamos a uma das praças, com os templos, cheias de turistas. Vi uma cobertura com um restaurante e fomos até lá. É um hotel. Muito bonito, caprichado. Subimos até o terraço para tomar umas cocas e fantas. A vista é espetacular e passamos ali alguns dos momentos mais agradáveis da viagem. Conversando, observando o povo e apreciando a paisagem espetacular.
Viva Bhaktapur. Não perca.
O Eric e a Holly me asseguraram que, de todas as visitas que fizeram, aquela foi a mais agradável, a mais bonita, a mais tranquila.
De volta a Kathmandu, fomos jantar com o pessoal da Mountain Madness num restaurante indiano.
Que comida! Que sabor. Embora eu estivesse com minha boca toda arrebentada (inclusive internamente, pelo ar seco e frio que respirei nas trilhas), o que fazia com que a comida apimentada pegasse fogo, o sabor era algo único e inesquecível. Maravilhoso. Come-se MUITO bem em Kathmandu se a gente souber onde ir.
Após o jantar fomos ao Thamel buscar as fotos que mandamos revelar. Aqui vai outra dica: compre filmes e faça as revelações em Kathmandu. É MUITO barato. Cada filme Kodak de 100 asa com 36 poses custa entre 1,3 e 1,7 dólares. E a revelação de cerca de 400 fotos, com a compra de um álbum para 300 fotos, custou cerca de 50 dólares. Além da excelente qualidade, o fato de ter as fotos prontas já no final da viagem é muito legal.
Já escolado com minhas viagens anteriores quando levei câmeras fotográficas sofisticadas, pesadas e com possibilidade de troca de lentes, desta vez mudei a receita. Aquelas câmeras, embora proporcionassem fotos maravilhosas, demandavam um tempo muito grande para acerto, para angulação. Além do peso.
Resolvi levar minha Olympus simples. Sem nenhum recurso, minúscula, mas que era apontar e disparar. De um lado foi muito legal. Confortável, simples e rápido. Pude capturar todos os momentos interessantes sem perder tempo.
De outro, a constatação de que faltou equipamento para uns zooms, para uma iluminação mais sofisticada…mas tudo bem. O registro que eu queria está legal.
Falta mesmo fez uma câmera de vídeo. Muito mais pela capacidade de capturar os SONS da viagem. O tambor dos sherpas e as cantorias noturnas, os sinos nos pescoços dos Yaks, os corvos, a confusão de idiomas, os sherpas e seu ” Tea ready” de manhã, as buzinas de Kathmandu, o som dos templos…isso tudo faltou mesmo. Paciência.
Paramos numa espécie de bar, mistura de discoteca com pub, para ver as fotos de todo mundo. O dente estava me matando e logo decidimos voltar ao hotel.
A volta foi de cinema.
O Blake alugou 2 riquixás. Cruzar o Thamel nos riquixás, em meios àquela profusão de luzes, de gente, de movimento, de buzinas , de sons e cheiros, é coisa de cinema.
NÃO DEIXE DE EXPERIMENTAR. Mas tem que ser no Thamel e de noite.
Essa foi minha despedida do Nepal. No dia seguinte, logo cedo, fiz minhas malas e me mandei para o aeroporto. Consegui embarcar na marra ( graças outra vez ao pessoal da Mountain Madness) no único vôo disponível para Bangkok e iniciei minha volta às pressas para o Brasil.
Tudo por causa do maldito dente.
Que pena sair dessa forma de Kathmandu. Não consegui conhecer os templos, a Durbar Square, e outros pontos de interesse. Uma pena.
A DIMENSÃO DO RISCO.
Às vezes eu caÍa na real e imaginava se valia a pena estar lá arriscando a vida. Mas arrisca mesmo?
Bem, o mal da montanha matou e ainda mata trekkers. Cansamos de ouvir histórias de gente que estava aparentemente bem e morreu na trilha. O fantasma do mal da montanha, do resgate em helicóptero, da internação com risco de vida num hospital de Kathmandu, acompanhou a gente a viagem toda.
O risco de permanecer sobre um terreno vivo no Campo Base, das avalanches a cada 15 minutos, as barracas armadas ao lado de uma fenda…
A possibilidade de um terremoto, um deslizamento.
Um tombo, um escorregão nas trilhas altas, um encontro desastroso com um Yak, os vôos no helicóptero lotado ou os pousos nos aeroportos acidentados…
Sempre houve um risco, incontrolável.
Dá para evitar? Não. Dá para acompanhar as reações do corpo à altitude, aclimatar com cuidado, prestar atenção nas trilhas.
Mas se a natureza resolver aplicar algum golpe, aí não tem como…
Na volta para o Brasil, outro momento especial. No aeroporto de Johannesburgo, olhando uma livraria, vi o livro escrito por Beck Weathers, LEFT FOR DEATH, contando sua história na tragédia de 1996 no Everest.
No livro, uma foto dele no Campo Base. Bem ali onde a gente montou nossas barracas. No lugar onde eu estava alguns dias atrás…
Aí aquelas histórias que pareciam ficção, ganham a realidade. E me reconheço naqueles caras…eu podia ser um deles. Aquilo tudo poderia ter acontecido comigo. Foi real e eu estive ali perto…
Valeu a pena? Muito.
Eu iria outra vez? Sim. Desta vez pelo lado do Tibet.
O que é que vem pela frente? Não sei. Estou namorando o Kilimanjaro… mas isso é outra história.