O Ártico na visão do Luciano Pires

O SONHO: O MEU PÓLO NORTE

Desde que retornei do Everest em 2001 tenho procurado outros destinos que pudessem proporcionar outra viagem transformadora. Entre os destinos desejados coloquei o Kilimanjaro, montanha mais alta da África. O Aconcágua, a mais alta das Américas. A montanha dos gorilas no Congo. O Vietnan e o Camboja. A Antártida. O Pólo Norte… Lugares instigantes, não é?

Em 2008, quando saí da empresa na qual trabalhei por 26 anos para me tornar um empreendedor, decidi marcar o momento com uma viagem espetacular. E fui para

  • O Polo Norte
  • Num navio Quebra-Gelos
  • Nuclear
  • Russo

Qualquer um desses quatro itens, sozinho, já daria muita história pra contar. Imagine todos juntos!

É essa história que conto a partir de agora.

ÁRTICO: CONHECENDO UM POUCO MAIS

O ÁRTICO

Bem, antes de mais nada cabe aqui situar o leitor sobre o Pólo Norte e o Ártico. O Ártico é a região que fica no extremo norte do planeta, em oposição à Antártica que fica no extremo sul. Diferente da Antártica que é um continente coberto de gelo, o Ártico consiste do Oceano Ártico que banha a costa norte da América do Norte, a Eurásia e suas ilhas. Algumas das ilhas são montanhosas, a maioria cobertas por capas de gelo e de neve. Outras ilhas são menos acidentadas principalmente as que ficam no norte do Canadá.

O Ártico abrange partes do Canadá, da Dinamarca (através da Groelândia, que é território Dinamarquês), Estados Unidos (Alaska), Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia.

O Oceano Ártico tem uma área de aproximadamente 14.090.000 quilômetros quadrados, com uma profundidade média de 3.658 metros. Durante o inverno aproximadamente 14 milhões de quilômetros quadrados ficam cobertos de gelo, o que torna a navegação na área praticamente impossível. É quando entram os navios quebra-gelos que mantém abertas as rotas comerciais na região.

No verão essa capa de gelo é reduzida aproximadamente pela metade, retraindo-se cerca de 160 km em direção ao Pólo Norte. A espessura também reduz-se no verão, facilitando o trabalho dos quebra-gelos.

Durante o inverno a capa de gelo tem em média três metros de espessura e está em movimento, girando ao redor do Pólo Norte, ajudada pelas correntes marítimas e pelo vento. Durante as tempestades essa capa se quebra em pedaços que depois vão fundir-se novamente.

As terras que margeiam o Oceano Ártico permanecem sob a neve e o gelo entre nove e dez meses por ano. A vegetação da região limita-se à “tundra” do Ártico, uma vegetação que inclui espécies de grama, flores, liquens e que forma um tapete sobre o qual falarei mais adiante. O solo que está situado abaixo dessa camada de tundra é chamado de “permafrost”, pois permanece congelado por dois anos ou mais. Durante o curto verão do Ártico a tundra é exposta ao sol e experimenta crescimento e desenvolvimento.

O termo “Ártico” vem do grego “arktos”, que significa urso. Dizem os historiadores que esse “urso” tem a ver com a constelação da Ursa Maior, onde está localizada a estrela polar.

Considera-se que a região do Ártico é aquela que está a norte do Círculo Ártico, localizado a 66 graus e 33 segundos (66º 33’) de latitude Norte. Esse círculo determina o limite da noite polar, ou do sol da meia noite como é conhecido o fenômeno que ocorre naquela região quando as noites ou os dias duram meses.

A região do Ártico é, portanto, constituída de uma vasta porção do oceano coberta de gelo e rodeada por solos gelados, sem árvores. O clima da região é caracterizado por invernos extremamente frios e verões com baixas temperaturas quando comparados às regiões tropicais. Lá praticamente não chove, sendo a chuva substituída por neve geralmente acompanhada de fortes ventos, que levam a temperatura do inverno facilmente para 40 graus negativos, já tendo atingido o recorde de 68 graus abaixo de zero! O que determina as temperaturas na região são as correntes marítimas. O Pólo Norte não é a região mais fria do Ártico. É na Sibéria que estão as temperaturas mais baixas, em função das correntes oceânicas.

O Ártico está no imaginário popular principalmente por causa dos esquimós, dos ursos polares, da aurora boreal e do pólo norte. Os esquimós são descendentes de um povo nômade que chegou ao Ártico através do Alaska. Atualmente não se usa mais o termo “esquimó” para designar esse povo. Hoje são os “inuits”. A região que eu percorreria em minha viagem não tem “inuits”.

O Pólo Norte, assim como as regiões em seu entorno, não pertence a nenhum país. Os países vizinhos (Estados Unidos, Canadá, Rússia, Noruega e Dinamarca) têm autonomia sobre as famosas 200 milhas náuticas (370 quilômetros) a partir de suas costas. Mas todo mundo está de olho na região e uma batalha diplomática está em curso para determinar quem tem direito a que áreas.

O PÓLO NORTE

O Pólo Norte, assim como o Pólo Sul, é um ponto matemático pelo qual passa um eixo imaginário em torno do qual a Terra gira. Nesse ponto do planeta o sol circula sobre o horizonte durante seis meses do ano, quando não existe noite, apenas dia. Nos outros seis meses a situação se inverte, com 180 dias de noite. O Pólo não tem comprimento, largura ou profundidade. E como o gelo está em constante movimento é impossível colocar um marco permanente nos 90 graus norte. Quem quiser chegar ao Pólo Norte deve fazê-lo utilizando um GPS e manobrando o navio ou trenó ou caminhando até chegar ao ponto desejado.

Mas esse é o Pólo Norte geográfico. Existe outro pólo, que é o magnético, o local onde as linhas do campo magnético do planeta mergulham verticalmente no solo. NO ano de 2005 a posição estimada do pólo magnético era 82,7º norte e 114,4º leste.

A posição geográfica do pólo norte magnético muda de ano para ano, entre o Ártico Canadense e o Oceano Ártico. Hoje o pólo magnético está a 1.100 quilômetros do local onde foi encontrado pela primeira vez, por James Ross em 1831. E está a cerca de 885 quilômetros do pólo geográfico.

O ÁRTICO RUSSO

Minha viagem para o polo seria pela rota que parte do porto de Murmansk, na Rússia. O ártico russo atravessa dois continentes e nove zonas de tempo. É a maior costa sob jurisdição de um governo no norte do planeta.

Durante aproximadamente seis meses do ano essa costa está no escuro, coberta de gelo, praticamente impossível de ser navegada e por mais de mil anos os russos tentaram encontrar uma forma de vencer as limitações do escuro, do gelo e do clima. Eles sabiam que poderiam cortar pela metade o tempo das viagens de seus navios do Oceano Atlântico para o Pacífico se encontrassem uma rota pelo norte.

Ao primeiros registros de exploração daquela região vem do ano de 1032 quando exploradores aventuraram-se por lá. Foi em 1764 que o capitão Pavel Chichagov foi incumbido de chefiar uma expedição para encontrar uma rota marítima pelo norte. Foram duas tentativas sem êxito. O gelo não permitiu que os navios seguissem viagem.

Em 1899 o primeiro quebra-gelos russo navegou naquelas águas. Foi o Yermak. Em 1901, sob commando do almirante Makarov o Yermak conseguiu chegar até o arquipélago de Franz Josef Land.

Em 1932 outro quebra-gelos, o Sibiriakov fez pela primeira vez a rota do mar norte, numa única temporada, demonstrando que era possível estabelecer uma linha comercial através do ártico russo. Hoje uma frota de navios quebra-gelos, muitos deles nucleares, mantém essa passagem aberta para navios comerciais.

A bordo de um desses quebra-gelos eu faria minha viagem.

INÍCIO: RUMO AO PÓLO NORTE

Desde a aventura do Aconcágua vários problemas pessoais acabaram atrapalhando meus planos para novas viagens.

Em fevereiro de 2007 tive um descolamento de retina, fiquei no estaleiro por quatro meses. Parei com a academia. Engordei, fiquei fora de forma e qualquer aventura física tornou-se proibitiva. Cheguei aos 96 quilos, meu recorde. Tudo começou a doer… Um horror. De um lado em precisando voltar aos treinos e querendo fazer nova viagem. De outro a agenda que não dava brechas. E uma certa preguiça (e dores) para retomar academia….

A viagem ao Everest e meu livro proporcionaram uma série de contatos interessantes. Conheci pessoalmente a família Schurmann, Amyr Klink, Ayrton Ortiz, Guilherme Rocha, Ana Elisa Boscarioli – a primeira brasileira a subir o Everest – Vitor Negrete, Rodrigo Raineri… E num dos contatos cheguei até Zelfa Silva, que representa a Quark Expeditions, uma empresa que organiza viagens para a Antártida e o Ártico. Acho que foi em 2003 que almoçamos juntos e a Zelfa me entregou um folheto maravilhoso com os vários programas da Quark em direção aos pólos. Fascinante. E caro, muito caro!

As viagens da Quark são planejadas para quem quer conforto e aventura. Para quem tem dinheiro e já viajou pra todo canto. Para quem não tem mais idade para grandes demandas físicas. E oferecem roteiros fascinantes que seguem as trilhas de grandes aventureiros. Mas repito: são caras! Facilmente custam 20 mil dólares… Não dava pra ir. Visitei o Site da Quark (www.quarkexpeditions.com) e me deliciei com as descrição dos roteiros a bordo de navios especiais (para a Antártica) e de navios quebra-gelos – alguns nucleares – para o Ártico. A Zelfa me cadastrou e de tempos em tempos eu passei a receber os e-mails e correspondências com as programações anuais. Todo ano me dava água na boca…

Em março de 2008, no dia em que, após muita negociação, marquei a data para sair da Dana, a empresa onde trabalhei por 26 anos, a mágica começou… Quando abri meu e-mail em casa, recebi um prospecto eletrônico da Zelfa, com a programação da Quark para 2008. Bati o olho e lá estava “North Pole”.

Uma loucura. Uma viagem rápida, de cerca de 20 dias. Saindo da Rússia, do porto de Murmansk a bordo de um navio russo. Um quebra-gelos. Nuclear. O maior do mundo, que faria sua viagem inaugural até o Pólo Norte.

Era demais… De quebra-gelos nuclear russo pro Pólo Norte. Repeti essa frase centenas de vezes: quebragelosnuclearrussopropolonorte… qualquer pedacinho dessa frase, independente já era o máximo!! Imagine tudo junto!!!!

E era o momento exato! Eu queria marcar a transição em minha carreira com uma viagem impactante. E aquele e-mail vinha na hora certa! Olhei minha agenda e as datas batiam: entre 20 de junho e 8 de julho. Perfeito! E foi aí que eu broxei… O custo era altíssimo. Começava em 23 mil dólares….

Escrevi para a Zelfa lamentando:

Zelfa, Zelfa, você me deixa com o coração apertado… Fui voando ver a proposta, já fazendo os planos de viagem. Esperava uma proposta de 10 ou 12 mil dólares…e encontro uma de 23 mil. Não dá pra mim… Tem algum esquema que garanta um desconto? Se tiver eu vou!

A resposta da Zelfa deixou um clima de esperança no ar:

Que bom que ainda estás entusiasmado em ir ao Pólo! Vou ver o que posso te oferecer e te aviso assim que possível. A idéia seria depois publicar um livro? Falar no rádio, etc? Neste caso deverás mencionar Quark Expeditions em tudo e eu como contato no Brasil. Espero poder te dar uma resposta positiva! Abraços, Zelfa

A Quark tem pouquíssimos clientes no Brasil e a perspectiva de um barulho como fiz com o Everest era muito interessante para eles. E meu site, meus livros, minhas colunas em revistas e jornais e pela internet, meu programa de rádio, eram um canal perfeito para divulgação. O e-mail da Zelfa fez ferver o meu sangue e remeti a ela uma proposta de trabalho, um projeto mesmo, com meus custos e as contrapartidas. E cruzei os dedos… Naquele mesmo dia parti para Porto Alegre a trabalho. À noite, no hotel, abro meu e-mail e o sangue ferve outra vez. A Zelfa dizia que tinha uma proposta especial para mim. E ela dizia que estaria em Porto Alegre naquela semana.

Não acreditei… A Zelfa mora em Buenos Aires e dizia que estava em Porto Alegre. Justo no dia em que eu estava lá! Mais um sinal? Fomos almoçar no dia seguinte e fechamos o acordo: eu teria um bom desconto e cobriria a diferença trabalhando para divulgar a viagem sempre mencionando o nome da Quark no Brasil. Ela me entregou um envelope com folhetos e adesivos e eu embarquei de volta para São Paulo com a cabeça no Pólo Norte. Não acreditava que tinha fechado o negócio!!! Eu estava mais que feliz, e com o Pólo Norte no estômago!

E então parti pra preparar a documentação. A primeira coisa era ir atrás do visto Russo. Procurei a embaixada e vi que ficava no Jardim Everest… Essa viagem prometia.

Liguei para a embaixada para saber como era o esquema de visto e fui atendido por um russo de sotaque forte, me informou que era só ir até lá, não precisava marcar horário, nada. Olhei no site e as informações sobre o visto eram simples. Na verdade o mais difícil era uma carta-convite que eu deveria receber da Murmansk Shipping Co, a empresa que opera os quebra-gelos. Mas o documento foi rapidamente providenciado pelo pessoal da Quark Expeditions e pude finalmente me dirigir até o Consulado Russo. Levei comigo a carta-convite, o passaporte, a passagem, o formulário que baixei do site e uma foto 3X4 colada nele, cerca de 150 reais e o roteiro da viagem. Só precisei do passaporte, do formulário e da carta convite. Fui até lá tranqüilo numa sexta feira pela manhã. Para encontrar uma fila gigantesca e ninguém para responder perguntas ou orientar. A turma que estava na fila é que orientava quem chegava. Dois guichês: um para entrega de documentos e outro para pagamento e retirada do visto. Na fila uma dezena de office boys com pacotes de documentos. Aquilo ia levar horas! Fiquei ali por quase duas horas e desisti. Liguei para o Sérgio da Domenico Turismo que me informou que para tirar o visto usando um agente eu ia gastar uns 350 reais. Não concordei. Voltei na segunda feira, mais cedo. Peguei outra fila, menor. E uma hora depois eu estava fora do Consulado, com o protocolo para retirada do passaporte com o visto no dia 2 de junho. Se algo desse errado eu ainda teria 2 semanas para correr atrás.

O visto russo tem uma particularidade: ele vale só pela viagem que você fará. A Zelfa me avisou bastante sobre isso. Se eu planejasse entrar na Rússia mais de uma vez, precisaria de outro visto. E me contou uma história inacreditável: um casal norte americano fez tudo certinho, gastou cerca de 50 mil dólares nas passagens, providenciou o visto e chegou a Helsinki. Então decidiram dar um pulo em São Petersburgo, a cidade emblemática na Rússia, que fica pertinho. Visitaram e voltaram para Helsinki, de onde tomaram o vôo charter para Murmansk na Rússia. Na imigração foram barrados pois seu visto estava vencido. Queimaram-no na visita a São Petersburgo. E não teve choro! Voltaram pra casa 50 mil dólares mais pobres e sem o Pólo Norte… Como eu montei uma agenda muito justa, não havia problema. Meu visto seria para uma entrada só. Depois me arrependi. Eu devia ter tirado um visto duplo e dado um pulo em São Petersburgo.

Deu tudo certo, no dia 2 de julho passei no consulado, estava vazio, retirei o passaporte com o visto e saí de lá me sentindo na Rússia. Meio preocupado, é claro. O visto Russo está na página seguinte à do visto dos EUA. Só quero ver quando eu visitar o Tio Sam se os caras vão me olhar desconfiados…

AÇÃO: A PASSAGEM

Mais uma vez meu amigo que acertou as passagens para o Everest, o Sérgio da Domenico Turismo, arranjou tudo. Expliquei as necessidades e em algumas horas ele me ofereceu o melhor pacote. Eu partiria no dia 20 de Junho de São Paulo para Frankfurt pela Lufthansa. Lá pegaria uma conexão com a mesma companhia para Helsinki. O trecho Helsinki / Murmansk seria um vôo charter da Quark Expeditions. A passagem custou cerca de R$ 2.200,00 que botei no cartão de crédito em seis vezes. E pronto. Sem stress, sem problemas. Quase. Embarquei com o assento marcado para corredor (confirmado no momento do check in) para descobrir dentro do avião que eu estava numa porra duma janela. Odeio voar na janela. Ainda mais por 11 horas! Na hora de ir no banheiro tem que incomodar todo mundo, é uma merda. Mas paciência… Vamos ver se o serviço de bos… ops, de bordo é igual àquele inaugurado pela linha aérea inteligente Gol. Uma barra de cereal de um quilo talvez. Com direito a três copos d’água em vez de dois.

Comprei alguns livros pela Amazon e na Livraria Cultura, sobre as viagens para o Pólo Norte. Juntando com os que eu tinha em casa, foram seis livros no total: Barrow’s Boys, Frozen In Time, O Norte Verdadeiro, Across The Top Of The World e outros dois cujos nomes não me lembro agora. Cada um deles contando detalhes e histórias fascinantes dos aventureiros que tentaram chegar ao Pólo desde épocas remotas. Fascinantes…

OS EQUIPAMENTOS

Também saí atrás de complementar as roupas. E adivinha onde fui? Na mesma loja da Pé Na Trilha onde comprei meus equipamentos para o Everest oito anos atrás. Eu nunca mais tinha retornado lá e foi uma delícia rever a loja e aquele clima tão particulares.

A viagem para o Pólo tinha uma característica totalmente diferente das outras: eu nunca estaria numa trilha com a mochila às costas. Estaria confortavelmente instalado numa cabine aquecida. Podia levar o que quisesse comigo, sem me importar com o peso. Portanto, o equipamento fotográfico podia ser melhor do que o que levei nas viagens anteriores. Fiz uma pesquisa. O Elias me sugeriu levar uma Nikon digital semi profissional. Quando vi o tamanho da criança desisti. Voltei a pesquisar as máquinas e o universo disponível é gigantesco. Foram umas duas semanas sondando a internet até que decidi por um modelo da Canon. Mas no final da pesquisa, por alguma razão, resolvi procurar câmeras com bastante zoom ( e como essa decisão foi acertada!). E salta na minha cara uma Sony Cybershot H9, com zoom de 15 vezes! Um número assombroso. Definição de 8,2 megapixel, o que era suficiente para minhas pretensões. E o melhor: completamente compatível com meu laptop e com a minha câmera atual, uma Sony ultra compacta. Eu poderia compartilhar cartões de memória e baterias. E teria um zoom espetacular. Pronto. Decidido, compra feita. Algo em torno de R$ 1250,00. Quando a câmera chegou vi que era uma tetéia. Linda, fácil de usar, com imagem espetacular. Decidi comprar também um jogo de lentes: uma grande angular, uma telezoom que praticamente dobrava o alcance do zoom da maquina e um filtro polarizador. Lá se foram mais uns R$ 1.200,00… Mas dessa vez eu tinha equipamento pra ninguém botar defeito. Semi-profissional, é verdade, mas pra quem fez o que eu fiz com aquela maquininha que levei pro Everest, era o máximo! Todas as fotos que você vê aqui no site foram tiradas com ela.

Em seguida saí atrás de uma mochila para o equipamento fotográfico, que também acomodasse o laptop. Mais R$ 380,00. E na hora de comprar a mochila surge a necessidade do tripé. Mas tripé é grande, desajeitado. Minhas aventuras nas montanhas mostraram que cada grama, cada milímetro de equipamento fazem uma baita diferença. Comprei um monopé telescópico, que se mostrou desnecessário na viagem. E pronto. Tudo pronto para voltar com as melhores imagens já produzidas no Ártico por fotógrafos chamados Luciano Pires. Pouco peso, agilidade, o equipamento que eu precisava.

Enquanto eu finalizava os detalhes da viagem, contratei uma assessoria de imprensa para divulgar meus trabalhos. E a viagem ao Pólo Norte foi o primeiro esforço, que começou com um release distribuído uma semana antes de minha partida:

Brasileiro fará parte de expedição ao Pólo Norte

Ex-executivo, que trocou o terno e a gravata pela mochila e o tênis, embarca no próximo dia 20 no “50 Years of Victory”, considerado o maior quebra-gelos nuclear do mundo

São Paulo, junho de 2008 – O comunicador multimídia Luciano Pires, autor dos livros “O Meu Everest” e “Brasileiros Pocotó” e responsável pela rádio Café Brasil, embarca no próximo dia 20 de junho para uma expedição ao Pólo Norte. Durante a viagem, Pires pretende captar imagens do verão no ártico, já afetado pelo aquecimento global, além de colher material para um novo livro e preparar uma palestra, focada nos processos de julgamento e tomada de decisão.

Seu roteiro inclui uma parada em Helsinki, capital da Finlândia e principal centro tecnológico dos países nórdicos. De lá, segue para Murmansk, cidade portuária russa, localizada no nordeste do País. Murmansk é conhecida por sua importante base marinha e é ponto estratégico para expedições ao Pólo Norte. Esse é o local de partida para o navio “50 Years of Victory”, maior quebra gelos nuclear do mundo. A embarcação começou a ser construída em 1989 e foi finalizada apenas em 2003. Com 159 metros de comprimento por 30 metros de largura, foi desenhado para quebrar crostas de gelo com até 2,8 metros de espessura. No navio, que conta com tripulação de 138 pessoas e dois helicópteros a bordo, Luciano Pires se junta a cerca de 120 passageiros, em expedição organizada pela agência norte americana Quark Expeditions.

A aventura segue pelo Mar de Barents, até chegar ao Pólo Norte, onde os participantes poderão andar pelo gelo, além de receber informações sobre a natureza local. Em seu caminho de volta ao sul, a expedição passará pelo arquipélago de Franz Josef, formado por 191 ilhas cobertas por gelo, onde é possível observar ursos polares e aves marinhas.

Luciano Pires, que já visitou o Campo Base do Everest, no Nepal, pico mais alto do mundo, em 2001, e o Aconcágua, na Argentina, maior montanha da Américas, em 2006, considera essa nova aventura como um marco em sua trajetória, após deixar a posição de executivo em uma multinacional, onde atuou por 26 anos, para buscar projetos pessoais.

Junto com os documentos de confirmação da viagem, recebi uma elegante apostila com os detalhes sobre como funcionam as coisas no navio:

– nosso grupo tem cerca de 128 pessoas ( na verdade acabaram sendo 81)

– voaremos num charter (avião especialmente fretado para o grupo) de Helsinki para Murmansk. Do aeroporto vamos direto para o navio, sem parar pela cidade

– é proibido fotografar ou filmar enquanto o navio estiver atracado ou zarpando. Talvez em razão do porto de Murmansk ser a base da frota russa do norte, com submarinos nucleares e navios da marinha. Mas na hora lá, todo mundo tirou as câmeras e fotografou à vontade.

– será possível receber e enviar e-mails do navio. Mas não ficou claro como e quanto custa. No navio descobri: e-mail (usando apenas o e-mail dop navio) custavam 2,50 dólares.

– é possível usar o telefone do navio para falar com o mundo, pagando-se 2,5 dólares por minuto. Tanto de chamadas feitas quanto recebidas.

– o navio tem um esquema de hotelaria bem profissional. É adaptado para esta viagem e tem as mordomias de sempre: comida da melhor qualidade; cabines com aquecimento, televisor e DVD; serviço de lavanderia; médico a bordo; massagista e uma equipe de sete profissionais conduzindo o grupo. Desde o chefe da expedição, passando por técnicos em biologia, oceanografia e história até fotógrafos. Até um artista plástico faz parte da equipe.

– vou dividir a cabine com quem? Não faço idéia. Começou a torcida.

– o navio tem um helicóptero que voa constantemente para fazer reconhecimento do gelo na rota e para levar os passageiros até os locais onde será possível descer

– ganhei – como todos os passageiros – um casaco (“parka”) amarelo fantástico para usar o tempo todo a bordo e em terra. E usarei botas de borracha que eles emprestam, para descer em “terra”. Na verdade em gelo…

– mil recomendações sobre como se comportar enquanto estiver em terra, sobre respeitar a fauna e a flora e não prejudicar o ambiente.

– duas dicas deliciosas. A primeira é bem razoável: “quando aparecerem ursos polares será proibido descer do navio.” A segunda é preocupante: “jamais enfrente um urso polar…”.

Aí meu filho me pergunta o que eu farei se estiver lá com a turma e ninguém perceber que um urso chega escondidinho e ataca. Como faremos? Expliquei que os caras têm armas, que se o urso atacar será abatido. O Dani ficou puto: “Porra! Vocês moram a 9 mil quilômetros de distância, vão lá encher o saco do coitado do urso que está na casa dele e ainda matam o bicho?”… Ele insistiu em saber o que eu faria e eu disse que correria mais rápido que os velhinhos que fazem parte do grupo.

– nessa época do ano é sempre dia, o sol não se põe. E um sistema de som no navio é usado para alertar sobre a presença de formações geológicas ou gelológicas, animais ou eventos que vão surgindo ao longo da rota. Algo como: “Atenção. Urso polar 500 jardas a estibordo.” Aí sai todo mundo correndo das cabines, com máquinas fotográficas e filmadoras a tiracolo pra ver o bicho. Vou me foder nessa. Primeiro que se for um russo falando inglês não vou entender nada. Segundo que não tenho a menor idéia de quanto é 500 jardas e pra que lado fica o

– um dos livros que estou lendo foi escrito por um sujeito que fez a mesma viagem que farei, mas em 1993. E ele diz que a comida do navio é parecida com algumas mulheres que ele conheceu: bonita de ver mas o gosto é uma merda… É, como a coisa melhoro desde a viagem dele… Comi como se estivesse nos melhores restaurantes!

– existe uma biblioteca completíssima sobre o Pólo Norte no navio, assim como uma loja com souvenirs e objetos de primeira necessidade

– navios quebra-gelos não quebram o gelo simplesmente trombando de frente nele. Na verdade são desenhados para subir na plataforma de gelo que surge diante de si. Com o peso do navio, o gelo quebra e abre um caminho. Então o navio segue numa espécie de sobe-e-desce constante. E diz que a turma passa mal até se acostumar. To levando Dramim e Plazil comigo. Só quero ver…

– embarquei na sexta. Na terça anterior peguei uma gripe esquisita, que deixa o corpo todo dolorido, dá uma tosse seca, dor de cabeça e calafrios. A noite de terça para quarta foi infame. A quarta e a quinta idem. Embarquei com os sintomas mais leves mas tossi e espirrei a viagem toda. E o ar condicionado do avião ajudou a piorar as sensações. Tomara que eu saia dessa antes de entrar no círculo polar ártico. Já pensou? Um livro chamado “Gripado no Pólo Norte”? Ninguém merece…

– o perfil do grupo eu não conheço mas deu para estimar com base nos relatos da Zelfa, nas fotos e nas leituras que fiz. E a lógica é a seguinte: quem tem 23 mil dólares para gastar numa viagem dessas? Se for um casal serão pelo menos 46 mil dólares? Só gente de posses. Gente que já conheceu o mundo todo. E gente assim normalmente não é jovem. Portanto deve ser um grupo de gente madura. E rica. Bingo quanto ao gente madura. Mas nada dessa história de gente rica. Claro que tinha gente lá que não estava nem aí para o dinheiro, mas a maioria que conheci era gente que economizou para a viagem, aposentados que usavam suas pensões para a viagem de suas vidas e uns caras como eu.

– ao longo da viagem alguns monitores fazem palestras sobre o ártico, a vida marinha, os pássaros. Etc etc etc . Terei aulas sobre a região. Devem ser interessantes, considerando que os monitores vão para lá todo ano e têm muita experiência. E eram realmente interessantes, mas os caras não eram palestrantes. Além disso, eram gringos falando pra gringos. Jamais se importaram em falar pausadamente, de forma clara, para uma platéia composta de gente do mundo todo que não dominava o inglês a ponto de entender as gírias, a metralhadora verbal e as piadas regionais deles. Dormi em todas as palestras.

– o contrato que assinei é assustador. Cheio de cláusulas que livram o operador de qualquer responsabilidade sobre a viagem, no caso de acontecer algum incidente. Intempéries, guerras, problemas políticos, motins.. qualquer coisa que acontecer e obrigar a viagem a ser interrompida não é problema deles. E o dinheiro pago não é devolvido. Fiquei meio assim, mas na verdade não sei se seria possível fazer diferente.

– três dias antes de partir me liga o Zé Paulo, que não conheço, indicado por um amigo para me oferecer um plano familiar de saúde global que substitua o plano que eu tinha como executivo da Dana. Expliquei pra ele que só poderia tratar desse assunto após minha viagem. Mas acabei fechando com ele um plano de seguro de vida/médico por 12 meses, sem limites, cobrindo minha viagem e até mesmo os custos para uma evacuação por helicóptero. Olha a explicação dele:

Prezado Luciano, Foi um prazer conversar contigo e, desde já, confirmo que já deixei agendado o dia 14-Jul para entrarmos em contato novamente!Entretanto, conforme conversamos por fone há pouco, envio anexo a apresentação sobre o Seguro Viagem da IHI Danmark (Grupo BUPA – inglês) para seu conhecimento. Este é o Seguro Viagem com maior e melhor cobertura existente no mercado internacional. Veja se faz sentido e se lhe é importante/conveniente neste 1o momento, até para testar uma das Seguradoras que mais para frente iremos conversar. Caso queira contratar, favor enviar os dados da viagem (datas saida e retorno e país) bem como seus dados pessoais (data nasc + endereço completo) e/ou de seus acompanhantes, além disso preencher os dados do formulário de Cartão de Credito anexo e me passar por fax. Podemos fechar com até 24hs antes do horário da partida!O certificado vem no formato eletrônico em PDF que lhe retransmitirei via email, você imprime (1, 2 3 ou n cópias) para levar na viagem e ter no passaporte para usar se for necessário. A utilização é super-simples e, na realidade basta ligar p/ o nr telefônico que aparece no certificado 24hs por dia e pode falar em português mesmo que eles sempre tem alguém fala português. Você poderá observar que o Valor de Cobertura é “ilimitado”, ou seja, se você sofrer um acidente ou ficar doente durante a viajem, poderá ser tratado nos melhores médicos e especialistas do mundo, seja qual for o preço, e terá a cobertura. O custo é em torno dos USD 8 a 10/ dia, dependendo da idade e prazo no exterior. Eventualmente, caso voce fique mais de 20 dias e, já tenha alguma outra viagem internacional planejada e/ou a intenção de viajar nos próximos 12 meses, vale mais a pena contratar uma Apólice com cobertura ANUAL, pela qual vc estará coberto para quantas viagens internacionais fizer nos próximos 12 meses desde que durem, cada uma, no máximo 30 dias! Na prática, conforme poderá observar na descrição do Plano, se vc sofrer algum problema pequeno (dor de dente, dor de barriga, quebrar um dedo ou algo parecido) e for a uma clínica ou hospital tratar e sair logo em seguida, então voce pagará os custos diretamente a clinica ou hospital e solicita o reembolso quando voltar ao Brasil, bastando apenas apresentar o recibo do médico original. Por outro lado se for algo mais grave e terá que fazer exames de sangue ou ressonância etc, então avise a Danmark que ela se encarregará de contatar o Hospital ou clinica para efetuar o pagamento diretamente a eles. Na verdade, para o seu caso, considerando os lugares que você irá visitar, um dos benefícios que acho mais importante é o “Resgate Aéreo”. Neste caso, imagina que você precise realizar uma cirurgia e no Polo Norte eles não tenham um especialista ou hospital adequado; você pode ligar para a Danmark (ou o próprio medico que está te acompanhando pode ligar) e eles providenciarão o transporte aéreo especializado! Nos mantemos em contato. Abcs e boa viagem. ZP

O valor total foi de 162 dólares. Muito bom! Fechei tudo com ele 48 horas antes do embarque. Se você se interessar, me escreva que passo o contato dele.

– Bem, são agora 4:55 da manhã do sábado em São Paulo e estou ainda em vôo para Frankfurt. O serviço de bordo é aquela merda de sempre. Sucos amargos, coca com pouco gelo, “beef or chicken” e o “beef” é o maldito filé a convenção (medalhão ao molho madeira) com gosto de nada.

– nenhuma possibilidade de dormir no avião. Nariz entupido, coluna torta. Não dá mesmo. Vou deixar pra cair na cama em Helsinki.

20.06.2008: DE SÃO PAULO PARA HELSINKI, LATITUDE 60º 10’ NORTE , LONGITUDE 24º 56’ LESTE

A viagem de São Paulo a Helsinki levou 17 horas aproximadamente. Nada demais, mas continuo como sempre achando que a única coisa que não evoluiu na história da humanidade nos últimos trinta anos foram as companhias aéreas. Voei de Lufthansa. Pedi um lugar no corredor e confirmei com a garota do check in apenas para descobrir que o lugar que me deram era na janela. Poltrona apertada, serviço de bordo uma merda, aquelas coisas que a gente conhece desde os anos setenta. A única coisa que evoluiu na aviação foi a questão tecnológica que deu mais autonomia, segurança e economia para os aviões.

Mas para os passageiros, nada.

Desci em Frankfurt onde peguei a conexão para Helsinki e algum tempo depois eu estava lá, na capital da Finlândia. Fiz uma pesquisa pela internet pra ver o que é que teria pra fazer em Helsinki e concluí que tinha nada.

Fiquei no hotel Radisson SAS , localizado na região central da cidade. Eu estava seis horas adiantado em relação ao Brasil e o Jet leg me pegou em cheio. Além disso, eu estava saindo de uma gripe forte que me derrubou dois dias antes da viagem (parece ser esse meu carma). Fui sarando mas as dezessete horas no avião acabaram com o meu nariz, com a garganta e com o pulmão. Cheguei péssimo em Helsinki e optei por descansar. Só saí do hotel para dar uma pequena volta a pé. Como cheguei no sábado, passei o resto do dia e do domingo na cidade, que parece fantasma. Pouquíssima gente na rua. Uma gente bonita, aquelas loirinhas com cara de cinema e bebês loiros e de olhos azuis para todo lado. E um idioma que não dá pra entender. Por sorte todo mundo fala inglês e não encontrei problemas.

Aproveitei o tempo livre para dormir bastante e para dar umas incertas pelo hotel para conhecer quem seriam meus companheiros de viagem. Pra todo lado eram casais com os cabelos brancos. Idade média de 60 anos – pra mais. Tem gente dos EUA, Suíça, Inglaterra, Itália França, Holanda, Alemanha e até uma turma da China que encontramos no aeroporto de Murmansk. E destoando disso tudo, um brasileiro…

Nosso vôo para Murmansk estava confirmado para dia 24, por volta de 16 horas. A instrução era colocar a mala pra fora do quarto ao meio dia e apresentar-se no saguão do hotel as 14:00, para tomar o ônibus para o aeroporto. E assim fizemos.

Me senti numa daquelas excursões da terceira idade que minha mãe e meu pai fazem, sabe? Pra você ter uma idéia, três dos participantes tinham mais de 80 anos de idade. Dois com bengalinhas….

Bem, Helsinki ficou para trás e o foco agora era a Rússia. Qualquer pessoa com mais de cinqüenta anos de idade sabe o que significa a Rússia, o grande inimigo durante a Guerra Fria, a potência nuclear comunista cheia de segredos e planos para dominar o planeta. Até implodir nos anos oitenta.

24.06.2008: A BORDO DO 50 YEARS OF VICTORY. 69º 00’ N – 33º 58’ L

Murmansk é uma cidade importante da Rússia. É uma cidade e um porto marítmo que fica no extremo noroeste da Rússia, na Baía Kola a 12 quilômetros do Mar de Barens. Fica próxima da fronteira da Rússia com a Noruega e a Finlândia. O porto de Murmansk fica livre de gelo durante todo ano, em razão das correntes quentes do Atlântico Norte e ali está uma importante base naval Russa. Ali está baseada a Atomflot, a única frota de navios quebra-gelos nucleares do mundo, que são operados pela Murmansk Shipping Company. Foi dali que zarpou em 1977 o quebra-gelos nuclear “Arktika” para tornar-se o primeiro navio a chegar ao Pólo Norte.

Murmansk é a maior cidade dentro do círculo polar Ártico, com cerca de 350 mil habitantes, mas que parece estar encolhendo. Em 1989 eram 470 mil… A cidade sofreu um cerco alemão durante a segunda guerra mundial, que só não foi maior que o famoso cerco de Stalingrado. Por isso a cidade tem o título de “Cidade-Herói” e no Museu de Murmansk dá pra ver como eles se orgulham dos tempos de guerra.

Dei uma pesquisada na internet antes de embarcar e achei uma informação interessante: a temperatura mais baixa que já aconteceu lá foi de 39,4 graus abaixo de zero em 1999. E a mais alta foi de 32,9 acima de zero em 1972. Coisa de louco…

Descemos do avião da Finair direto para um ônibus que nos levou até a área de desembarque onde éramos esperados por uma russa uniformizada. Entramos na área e havia três cabines de madeira, brancas, com três russas na frente, como que guardando-as. Quando o grupo todo se reuniu as três russas – como se tivessem ensaiado – entraram nas cabines e fizeram o sinal:

– Come.

Eu era o primeiro da fila, entreguei o passaporte e fique ali feito um trouxa enquanto a fulana lia tudo. Levou um tempo enorme para carimbar, acho que ela nunca tinha lido “Brasil”, mas tudo bem. Então eu tinha que pegar a bagagem e passar pela aduana. Coloquei as três malas na esteira e entreguei um formulário para uma russa brava. Ela pegou, leu, me deu outro e mandou eu preencher outra vez. Eu devia ter errado alguma coisa naquela merda e ela me fez preencher outro. E a fila aumentando…

Quando consegui passar pela russa brava, peguei as sacolas de mão e fui direto pro ônibus que nos esperava. Uma lata velha toda suja, cheia de pacotes empilhados, caixas velhas e tocando música de balada russa. Um horror. E lá fundo uns oito chineses que haviam chegado antes de nós.

Ônibus velho, estradinha velha esburacada, cidade cinza e cheia de condomínios populares caindo aos pedaços até chegarmos ao porto. Era exatamente a idéia que eu fazia da Rússia comunista.

Chegamos no porto. Paramos ao lado de fora a cerca de 299 metros do nosso navio, o “50 years of Victory”.

Lá no alto um grupo com sete russas nos acenando… Os velhinhos ficaram todos ouriçados. Eu também.

Pronto. Outra vez querem examinar nossos passaportes. Entra um russo com a tradutora e uma folha de papel e vai olhando passaporte por passaporte. Como é de praxe, chega em mim a coisa pega, pois a gringalhada teima em me registrar como Pires Filho, Luciano Dias. E não há meios de eu acertar a pronuncia do “Pires” do jeito que eles querem. Então nunca conseguem me achar nas listas…

Aí vem a italiana querer saber com nossos guias a razão de ter que mostrar o passaporte outra vez. O diálogo é mais ou menos assim: – Mas outra vez os passaportes? Porquê? – Isto aqui é uma instalação nuclear, senhora. – ?? – Nuclear. – Nuclear? O que é nuclear? – Nuclear, atômica! – Ah atômica, mas porque? – O navio é um navio nuclear senhora. – Ahhh

A porra da italiana gastou uns 25 mil dólares para estar ali e não tinha a menor idéia do que estava fazendo…

O navio é grande…e como todo quebra gelos de sua classe é pintado de azul escuro e vermelho. Em nome do capitão Valentin Davydyants recebemos as boas vindas que para mim, foram boas em dobro. Eu estava curioso pra saber quem seria meu companheiro de quarto e descobri que eu tinha uma cabine só para mim. Eu era o passageiro 57, com direito a nome na porta…

Uma cabine bem legal, pequena, bem iluminada, com armários à vontade, dvd player, televisão, banheiro com chuveiro quentinho… um luxo.

Aliás, isso é interessante: o navio é nuclear, portanto a única coisa que nunca falta a bordo é energia. Luz, água quente, aquecimento, tem de sobra.

O navio não tem comunicação com a internet, portanto eu estaria sem e-mail ou navegação. A única comunicação possível seria através do telefone Iridium, por satélite, ao custo de USD 2,50 minuto. E com uma qualidade de ligação ruim. Achei estranha essa dificuldade de comunicação em pleno 2008, quando o homem consegue falar da lua e transmitir vídeos do meio da guerra. Mas fazer o quê?

Alguns passageiros trouxeram seus próprios telefones Iridium dos EUA. Um deles me disse que pagou USD 200,00 por um mês de aluguel e outro tanto pelas chamadas. Nada demais e parece que o telefone dele funcionava melhor que o do navio.

Dei uma explorada de leve no navio. A princípio é difícil de entender onde fica o quê, mas com o tempo a gente vai se achando.

Dois lugares são os principais: o salão das refeições e o salão das apresentações. Ambos bem decorados, um capricho mesmo. Considerando que o navio não é um navio construído para passageiros, até que o luxo encontrado a bordo é além do esperado. Uma surpresa mesmo. Eu esperava algo mais tosco.

Entramos no navio por volta das 20 horas e a partida estava estimada para as 24 horas. Como neste lugar durante o verão praticamente não tem noite ( são 24 horas de escuridão entre 2 de dezembro e 20 de janeiro e 24 horas de luz em junho e julho), teríamos luz suficiente para assistir a partida. Eu estava no quarto quando o sistema de alto falantes anunciou que estávamos em movimento. Fui lá para fora para ver dois barcos puxando nosso navio enquanto os alto falantes tocavam marchas militares russas. Me senti em plena guerra fria. Em poucos minutos o navio estava arrancando subindo o rio em direção ao oceano.

Tem um lance de segurança que faz lembrar bastante a guerra fia. Enquanto estávamos no navio, no porto, era proibido bater fotos e comunicar-se com o “mundo exterior”. O pessoal que chegou antes de nós disse que ficou praticamente preso na cabine.

Primeiro jantar a bordo. Comida de primeira, o luxo possível, um time de garçonetes russas – algumas muito bonitas – e começo do processo de conhecer as pessoas. Gente do mundo todo. USA, Austrália, Suíça, Itália, Canadá, China, Polônia, Inglaterra, França… e eu.O brasileiro.

Jantamos, trocamos idéias e nos recolhemos para as cabines. Ali começava uma outra aventura, que era tentar criar uma rotina. A cabine não tem cortinas que escureçam-na portanto eu teria luz 24 horas por dia. Me guiaria pelo relógio de parede e pelo programa que o pessoal colocou em prática. Toda manhã seríamos acordados as 07:30 horas com informações sobre o progresso da viagem e uma ou duas frases de efeito. Era assim que começava nosso dia.

Para me prevenir de enjôo eu trouxe comprimidos de Dramin, que comecei a tomar antes mesmo de embarcar. E só no terceiro dia é que percebi que o sono que me atava o dia todo vinha da porra do dramin. Eu não conseguia nem ler um livro, quanto mais assistir as palestras que a turma realizava diariamente. Era um sono desgraçado que só passou quanto parei de tomar a porra do dramin.

25.06.2008: MEU ANIVERSÁRIO! 72º 03’ N – 35º 34’ L. EM DIREÇÃO AO NORTE, CRUZANDO O MAR DE BARENS.

Acordei meio grogue com o sono do Dramin e experimentei o chuveiro, interessante. Apertadinho mas quentinho. Fui para o café da manhã com a cabeça em conflito. Era o dia do meu aniversário, o primeiro de minha vida que eu passaria sem meus familiares. Procurei não pensar muito a respeito, encarar o dia como outro dia qualquer ou ainda: como um dia especial, que pouquíssima gente pode experimentar… Um aniversário no círculo polar ártico a caminho do pólo norte. Um luxo só.

Após o café da manhã tivemos a primeira reunião para apresentação da equipe da Quark Expeditions. Tínhamos biólogos, historiadores, fotógrafos, geógrafos, artistas e também uns chutadores cuja presença não entendi. E descobri que o grupo que deveria ter cerca de 128 pessoas não tinha nem 85. Parece que estávamos numa recessão mundial e veio menos gente que o esperado.

Em seguida tivemos a sessão de distribuição das botas de borracha. Todo mundo recebeu um par de botas pretas que deveria ser utilizado quando descêssemos em terra. Ou melhor, em gelo.

E em seguida tivemos a distribuição das parkas, os agasalhos amarelos que são padrão nesta expedição. Trata-se de um agasalho pesadíssimo, fabricado para enfrentar o frio do ártico, bem legal. Todo mundo recebeu o seu e correu guardar na cabine. Dentro do navio é quente. Só de olhar para aquela parka eu já transpirava… Aliás, o lugar mais gostoso para ficar no navio era a minha cabine, pois eu mantinha a janela meio aberta e o calor era compensado pela brisa gelada do ártico. Começamos a viagem com cerca de 10 graus em Murmansk.

Na parte da tarde, uma reunião com a turma de segurança onde nos falaram sobre as precauções e ensinaram a vestir um macacão térmico. Complicadíssmo… Até vestir já estaríamos mortos…

Mais tarde outra reunião com os pilotos do helicóptero e uma simulação de emergência, quando todos deveríamos nos dirigir aos botes salva vidas. Uma zona a tal simulação, mas que deveria ser normal, pois logo nos dispensaram.

Durante a apresentação da turma da segurança, um momento-chave foi quando o líder da expedição chamou à frente três sujeitos – um deles parecia um armário – que eram a própria segurança. A função dos três era permanecer em alerta com seus rifles enquanto estivéssemos em terra – ou em gelo – guardando um perímetro para nos proteger dos ursos polares. Só então a ficha cai. Estávamos realmente numa região onde havia riscos sim. Até mesmo o risco de ser atacado por um urso polar! O responsável pela expedição mostrou um desenho explicando o posicionamento dos seguranças e deixando claro que havia um limite do qual não podíamos passar. Se passar o urso pega… Notei uma certa excitação no ar…

O navio seguia firme rumo ao norte. Calculo que a velocidade era de cerca de 20 nós, em mar muito calmo. Num determinado momento entramos dentro de uma cerração e dali para a frente foram horas e mais horas com nada pra ver a não ser cerração.

À noite o tradicional coquetel de boas vindas com o capitão e os oficiais do navio. Boas vindas em russo, evidentemente. A tripulação é composta de cerca de 170 pessoas, que você nunca vê quando circula pelo navio.

Em seguida um jantar. Sentei-me à mesa com dois ingleses, o Ian e o David e ficamos conversando. Eu não entendia nada do que o David dizia. O desgraçado falava um inglês enrolado e baixinho. Mas era um tirador de sarro, bem humorado e fã número um do Led Zeppelin. Fizemos uma boa amizade ali. Contei para os dois que era meu aniversário, encomendei um belo vinho italiano e brindamos a mim.

Eram cinqüenta e dois anos de idade… procurei não pensar muito a respeito. No final do jantar, apagam-se as luzes e vêm lá do fundo um bolo com aquela velinha que parece fogos de artifício e a turma toda canta o parabéns pra você. Um grupo vem me cumprimentar e assim passou meu níver…

Dei um tempo, esperei chegar meia noite e fui até a cabine de rádio, de onde liguei para a família no Brasil, outra experiência inusitada. O operador do rádio era um garoto russo, que falava o básico do básico do básico de inglês. Mas tinha uma cara boa e era bem humorado. Nos entendemos e consegui fazer as ligações. Chegou um amigo dele e os dois ficaram se divertindo ouvindo eu falar aquele idioma estranho ao telefone.

Olha, se eu queria um aniversário diferente, pode crer que consegui. Aliás, o meu aniversário durou 30 horas, as 24 normais mais as seis que eu estava à frente do Brasil…

Por fim o sono dos justos. Em meio à neblina.

26.06.2008: 78º 31’ N. 49º 01’ L

Passando por Franz Josef Land às 22 horas. Primeiros blocos de gelo avistados as 17:30

Acordei com a informação de que estávamos a 77 graus norte, com temperatura de 4 graus centígrados. Já havíamos navegado 55 milhas náuticas desde que saímos de Murmansk. Por volta de 11 horas da manhã fui olhar pela janela e – opa – começo a ver uns pedaços de gelo passando por nós. E cada vez mais pedaços. É então que o navio começa a chacoalhar ao entrar em contato com o gelo. Só então dá pra perceber a diferença entre um navio e um quebra gelos.

O 50 Years of Victory é o maior navio quebra-gelos do mundo. É uma daquelas maravilhas da tecnologia que pouca gente conhece.

Seu casco é desenhado para subir no gelo e quebrá-lo com o peso do próprio navio e assim seguir em frente.

É fascinante sentir sob os pés a vibração dos motores enquanto os solavancos do gelo quebrando são se sucedendo. Dá uma sensação de poder muito boa. Vou lá fora espiar…

Frio! Frio! Frio! A temperatura não estava tão baixa assim, eram quatro graus, mas o vento… por mais que eu tenha me protegido o vento penetrava e machucava. Coloquei a parka amarela, gorro, luvas, calça térmica e tudo que eu tinha direito e consegui ficar um bom tempo lá fora, filmando e fotografando os blocos de gelo que iam ficando para trás.

As cores do gelo são fantásticas. São tons de azul maravilhosos e o contraste do branco do gelo com as águas escuras do oceano é fascinante.

Opa! Mas aquilo ali são pegadas? E mais pegadas? Pegadas por toda parte! De ursos polares, inconfundíveis. Excitação generalizada!

Estávamos na terra deles e era possível ver claramente do navio as pegadas. Como é possível que um mamífero como um urso viva num lugar desses? Não consigo imaginar nada tão inóspito e agressivo à vida do que a região pela qual eu estava passando. Oceano com água na temperatura de congelamento, blocos de gelo à deriva. E pegadas… Agora era só uma questão de tempo até que surgisse um urso polar em nosso caminho. Mas ainda demoraria um bocado…

E de repente, do mesmo modo como os blocos de gelo surgiram, eles desaparecem e enfrentamos águas calmas. Até que lá na frente, mais gelo, e cada vez mais fechado. Mas o navio parece nem tomar conhecimento do gelo: segue em frente.

Decidi sair de novo, dessa vez com a câmera de filmagem, para buscar imagens legais. Mas não é fácil, viu? Pra quem está acostumado com aquelas filmadoras minúsculas, trabalhar com uma câmera profissional é uma encrenca. O navio vibrava e chacoalhava muito. Pela primeira vez temi não conseguir as imagens que eu pretendia. Talvez apenas quando estiver no helicóptero ou então quando descer no gelo. Mas mesmo assim capturei bastante coisa. E logo percebi que aquilo era monótono mas ao mesmo tempo hipnotizante. Sabe aquela sensação quando você olha para o fogo ou para uma cachoeira e fica como que hipnotizado? Aqui era o mesmo, os blocos de gelo, os ruídos, os balanços, tudo contribuindo para que a experiência de permanecer do lado de fora observando a navegação fosse algo mágico.

Lembrei-me então das histórias dos grandes exploradores, os caras que 150 anos atrás atiraram-se nestas mesmas águas sem os equipamentos e o conhecimento que agora me trazem aqui. É a mesma constatação que fiz ao longo da trilha do Everest: aqueles caras eram machos! Imagine como seria a viagem sem água quente, com comida racionada, com agasalhos nada sofisticados, sem as roupas técnicas nem os instrumentos de navegação. E num navio que ficaria preso no gelo por 9, 10 meses?

Bem, hoje começavam as palestras a bordo. Primeiro era a Susan com “Introdução à Geologia e o tempo geológico”; depois a Jane com “Pássaros marinhos do Ártico – uma introdução às diferentes espécies de pássaros marinhos” e por fim o Louis com “Uma introdução geológica ao Ártico”. Escolhi assistir apenas à terceira palestra. Conteúdo interessante, mas ministrada de forma amadora. Dormi a metade do tempo…Ô Dramin, viu?

Enquanto isso o tempo lá fora vai virando e de novo temos uma neblina fortíssima, sob a qual ficaremos durante várias horas.

Devagarzinho a rotina da viagem vai se firmando acorda-café-blablabla-almoço-blablabla-rosquinhas-blablabla-jantar-dormir , e de vez em quando botar a cara lá fora para fazer umas imagens que, no fundo no fundo, são sempre as mesmas: branco, neblina, gelo e água do mar. Nada de urso polar até agora… Mas as pegadas eu vi. E um monte!

Conheci já algumas pessoas. Gente de todo o tipo vindo pra cá, a maioria é mesmo de pessoas que já foram para a Antártica e agora estão fazendo o Ártico. Ficam fascinados quando eu digo que sou do Brasil…

27.06.2008: 83º 35’ N – 53º 10’ – NAVEGANDO ATRAVÉS DO GELO

Opa! Já chegamos aos 82 graus norte e a temperatura lá fora baixou para 1 grau. O bicho ta pegando, viu? Projeto para o dia: café, blábláblá, almoço, blábláblá, rosquinhas, blábláblá e jantar. Mas hoje tem um dinner especial é a “Neptune’s Ceremony & BBQ Dinner”. Pedem que usemos roupas de acordo. Que roupas? Só tenho um tipo de roupa: a de explorador amador. Mais nada, pô. Se bobear nem vou.

Hoje pegamos gelo mais forte. O barco tem balançado bastante e faz muito barulho. Saímos da área onde existiam os blocos de gelo independentes para entrar onde o gelo é contínuo. É impressionante como o navio parte pra cima do gelo sem tomar conhecimento.

As pegadas de urso polar desapareceram. Este lugar é um deserto sem vida. Gelo para todo lado, neblina de quando em quando e o sol brilhando tímido lá no fundo. É verdade, o sol está lá sim, meio apagado pela neblina, mas marcando presença.

Pegamos neve também. Sair lá fora para tirar fotos é uma aventura. Pareço um astronauta com aquela parca. E a cada dia que passa mais admiro os caras que estiveram aqui 100/150 anos atrás, viu? Não dá para imaginar o sofrimento que passaram em suas viagens para este fim de mundo. Se eu, com todo o conforto e mordomia, fico incomodado, imagine eles… Os caras eram feras sim.

Hoje almocei com uma americana simpática. Já é avó, tem quatro filhos todos na casa dos quarenta anos, separou-se do marido e decidiu voltar a trabalhar e viajar. Veio na viagem sozinha! Ontem no jantar foi um trio da Suécia. Uma velhinha que é uma figura, engraçadíssima, com mais de oitenta anos, de bengalinha e com uma carinha parece um cartum. Simpaticíssima. Com ela um sujeito meio quietão, que ficava vermelho quando saía no frio e uma moça mais nova e faladeira, que deixou o marido em casa. Com ela tive um diálogo interessante, sobre o papel que desempenhamos como modelos de vida, como pais, para nossos filhos, ao optarmos por fazer viagens como estas. Loucuras. Pessoalmente acho que tem um valor oculto nessas opções, no qual as pessoas não prestam atenção. Imagine o que se passa pela cabeça de um filho, uma filha, ao ver o pai ou a mãe escolher fazer viagens assim, completamente fora da normalidade, do padrão. Isso deve ter um impacto sobre suas escolhas futuras sim senhor, sobre a necessidade de fazer as coisas de forma diferente, fora do convencional. E quanto será que vale isso? Pra maioria das pessoas “normais”, não deve valer nada…

De teimoso fui assistir outra palestra, desta vez sobre a conquista da passagem norte. O assunto me interessa bastante e o palestrante foi o mesmo Louis. A palestra foi a mesma merda. Dormi de novo. Eu não aprendo…

Subi até a ponte de comando pela primeira vez, para ver os caras pilotando o navio. Estava uma correria, se entendi direito eles estavam tentando manobrar o navio para que pudéssemos descer numa posição onde o vento não incomodasse. A idéia é que teríamos um “barbecue” no gelo. Mas parece que não deu certo, o gelo estava quebradiço ou perigoso, continuamos no navio e o tal churrasco aconteceu na sala de jantar mesmo, quando fizeram uma cerimônia para Netuno, pedindo permissão para passar dos 85 graus norte. O principal momento da cerimônia foi quando todo mundo teve que ir lá na frente dar um beijo na boca de um peixe. Eu fui. Mico… Mas americano adora essas bobagens e tudo virou festa.

Depois do jantar assisti a um filme da National Geographic sobre o Ártico e fui pro meu quarto.

Quando eram 11 da noite, entra um puta sol pela minha janela! Olhei para fora, céu azul e sol brilhando! Não tive dúvidas, vesti minha roupa de frio e me mandei para filmar e tirar fotos. Lindas cenas, a cobertura de gelo para todo lado e o navio seguindo em frente. E fui assim até meia noite e meia, com sol forte e cores lindas. Se isto aqui é o verão, imagine como será o inverno…

Voltei para o quarto e tentei dormir, sem sucesso, rolei na cama até cinco da manhã, quando peguei no sono, mas logo era hora de acordar.

28.06.2008: 87º 10’ N – 53º 02’ L – NAVEGAÇÃO ATRAVÉS DO GELO.

Chegamos aos 86 graus norte, com temperatura de zero grau. Faltam 200 milhas náuticas até o Pólo Norte.

O programa de hoje foi mudado no último minuto, pois o tempo melhorou consideravelmente e a turma decidiu que o helicóptero ia voar. Então aconteceu aquela excitação. O alto falante anuncia que os grupos podiam se preparar para o vôo. Cada um dos 81 passageiros recebeu um número (o meu era o 79) e eles chamaram de dez em dez. Todo mundo obediente, em fila, aguardando para decolar com o helicóptero e dar umas três voltas ao redor do navio, quando poderíamos fotografar a vontade. À vontade em termos, pois a janelinha da aeronave é uma merdinha e eu tinha que ficar todo torcido para conseguir boas fotos. Além disso, o lado oposto ao meu foi privilegiado. Mas acho que consegui fotos razoáveis. Olha elas aqui.

O helicóptero deve ter uns trinta anos de idade no mínimo e a coisa mais engraçada é ver dentro dele uma imagem de uma santa na parede, logo acima do russo com cara de poucos amigos que faz a segurança interna…

O vôo foi tranqüilo, a turistada cansou de tirar fotos e depois foi almoço e o de sempre: “lectures”. Desta vez foi o líder da expedição que fez uma apresentação sobre a tecnologia dos navios quebra-gelos. Algumas coisas valem a pena guardar:

– navios quebra-gelos são construídos para abrir caminho para outros navios em meio ao gelo dos Pólos. – eles têm como característica o poder dos motores. Um navio normal, de passageiros, tem entre 7 mil e 12 mil HP. Um quebra-gelos tradicional, movido a diesel, tem cerca de 25 mil HP. O nosso “50 Years of Victory”, o maior do mundo, tem a bagatela de 75 mil HP. Você leu bem: setenta e cinco mil HP! É uma máquina fantástica. – se compararmos o nosso navio com o Erebus e o Terror, os dois navios que zarparam em 1846 (?) na fatídica viagem de John Franklin para encontrar a passagem norte, veremos até onde chegou a tecnologia. O Erebus e o Terror tinham por volta de 20 hp. E naquela época um navio poderoso tinha 220 hp. Eu disse 220… Os motores do Erebus e Terror eram locomotivas modificadas, movidas a carvão. Podiam navegar a cerca de 4 ou 5 nós em velocidade de cruzeiro. O “50 Years” vai a 20 nós com um pé nas costas… E quando pega gelo pela frente cai para os 4 a 5 nós que os outros faziam em mar aberto. – os quebra-gelos têm um desenho especial do casco, não só para facilitar a quebra do gelo como para abrir um caminho mais largo que o próprio quebra-gelos. É que atrás dele normalmente vem um navio maior – a frota de quebra-gelos russa serve para manter ativa durante os meses de inverno a passagem norte, uma importante rota comercial que funciona o ano todo em meio ao gelo do círculo polar. – o navio é construído para ser auto-suficiente. Com 138 tripulantes, tem dois reatores nucleares, esquema de dessalinização para produção contínua de água doce, quadra de esportes e piscina e capacidade para trocar as hélices se necessário. Tem também três GPS em pontos diferentes do navio. – perguntei aos especialistas se nosso navio conseguiria chegar ao Pólo Norte no inverno e a resposta foi: sim. Apenas seguiria mais devagar, pois enfrentaria camadas mais grossas de gelo. Mas chegaria lá.

Deitado em minha cabine, confortavelmente aquecido, com espaço à vontade para me locomover pelo navio e mordomias como dois bares com seus bartenders, mais uma vez sinto-me até covarde quando leio as histórias dos pioneiros que tentaram chegar até o Pólo Norte nos anos das grandes descobertas, entre 1818 e 1930. A descrição de como aquela turma era acomodada nos navios, de sua alimentação e de como passavam entre 9 e 10 meses de inverno presos ao gelo numa rotina diária de martírio e frio, faz de mim um sortudo por ter nascido numa época em que a tecnologia pode nos dar o conforto que estou experimentando. Mas é assim a história, cada um a seu tempo, não é? Talvez meu tataraneto a caminho de Marte fique fascinado com esta minha aventura e ache que eu também sou cabra macho…

O lado ruim da viagem é o velho problema das minhas costas. Já encrencaram em São Paulo dois dias antes da saída e ao longo da viagem têm sido um tormento. As camas, tanto do hotel quanto do navio, não ajudam. Ao levantar pela manhã parece que tomei uma surra. Já fiz uma sessão de massagem no navio com o Sacha, um russo que vive em Nova Iorque. Foi legal, sempre ajuda mas não acaba com o problema. Cheguei a abrir mão de fazer um vôo com o helicóptero em função das dores nas costas. E dá-lhe dorflex… Taí algo que a tecnologia ainda não conseguiu corrigir: minhas costas…

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29.06.2008: 89º 59’ N – 43º 37’ L – PÓLO NORTE AT LAST! CHEGADA ÀS 10:30 DA MANHÃ

Na noite de ontem fomos avisados de que estávamos desenvolvendo boa velocidade e que poderíamos chegar ao Pólo Norte na manhã de hoje, domingo. Mas o líder da expedição fez questão de não assumir compromissos. Contou que três anos atrás a situação estava igual, faltavam duas milhas para chegar, coisa de minutos, quando o navio encontrou gelo mais grosso. E os minutos transformaram-se em seis horas! Ficamos na expectativa de chegar ao Pólo após o café da manhã.

Por volta de 10 da manhã fomos avisados de que deveríamos todos ir para a proa do navio aguardar o momento exato. Existe uma celebração rotineira, inclusive com o Capitão discursando.

E nossa viagem tinha uma aura especial. Era a primeira vez que o “50 years of Victory” ia ao Pólo Norte. E tudo indicava que bateríamos o recorde de velocidade – ninguém jamais havia feito essa travessia Murmasnk-Pólo na velocidade que nós faríamos. Havia portanto motivos de sobra para festejar! Sem contar que era aniversário do Capitão. Tem gente que jura que ele colocou pressão na turma pra chegar lá no dia de seu aniversário.

Coloquei a vestimenta completa, que nesse caso são duas meias, a primeira fina e a segunda mais grossa, a bota de borracha (pois em breve desceríamos na neve), uma calça térmica, um macacão impermeável (que eu havia comprado para usar no Aconcágua), uma camiseta térmica de manga comprida e por cima de tudo a parka da expedição. Um gorro de lã era imprescindível também. Por cima do gorro, ia o capuz da parka. Como eu estava em pé na proa do navio, o vento soprava direto em meu rosto, o que obrigava a levantar o protetor da parka até cobrir minha boca. Com a proteção dos óculos escuros, ficava apenas a ponta do nariz e as maçãs do rosto expostas, que ficavam vermelhinhas, vermelhinhas…

O pessoal juntou-se todo na proa ouvindo pelos alto falantes os detalhes da operação conforme nos aproximávamos de nosso destino.

O Pólo Norte é um ponto geográfico que não existe como formação natural. Não há uma montanha, um rio, uma árvore ou mesmo um signo erguido pelo homem no local. Simplesmente porque o local não existe. É um ponto matemático calculado sobre o oceano. No local onde ele se situa o oceano está congelado, formando placas que têm que ser rompidas pelo navio. Sobre uma dessas placas nós desceríamos quando encontrássemos o tal ponto matemático. Como essas placas estão constantemente flutuando ao sabor dos ventos e das correntes marítimas, mesmo que conseguíssemos descer exatamente no ponto onde os instrumentos marcassem os 90 graus norte, em minutos não estaríamos mais lá. Teríamos derivado para um lado ou para o outro. Portanto nossa aproximação era composta de dois momentos: o exato segundo em que os instrumentos do navio indicariam os 90 graus norte e depois, conforme o navio encontrasse gelo em boas condições, a instalação de um marco e a realização de um churrasco para celebrar nossa conquista.

Imediatamente surgiram GPS por todos os lados. Todo mundo de olho enquanto os aparelhinhos indicavam 89 graus e 57 segundos… 58 segundos… 59 segundos… Até que o líder da expedição começou uma contagem regressiva. E a buzina do navio disparou, comemorando nossa chegada ao Pólo Norte. Champanhe, “congratulations” para todo lado e uma certa sensação de frustração. Era diferente. Em minhas outras aventuras, cheguei até “O” campo base do Everest. Cheguei até “O” Aconcágua. Eu podia abaixar e pegar uma pedrinha. Podia bater uma foto. Podia tocar nos símbolos que indicavam que eu havia atingido meu objetivo. Mas agora não. Eu estava no norte geográfico, exatamente sobre uma equação matemática, intangível, invisível. Um lugar que custou a vida de centenas de homens para ser conquistado. Mas que jamais passaria de um ponto num atlas. Só.

E pra falar a verdade, é longe do Pólo que estão as coisas mais legais do Ártico. Em algumas ilhas que são santuários ecológicos ou até mesmo antropológicos e históricos. No Pólo mesmo, o que temos é uma monótona sucessão de formações de gelo, que vão até o horizonte, para qualquer lado que você olhe. Branco e azul contrastando com o negro do oceano. A torcida era que surgisse um urso polar por ali, para quebrar a monotonia…

Pois bem. Tudo pronto, o pessoal manobrou o navio com delicadeza até encontrar uma placa de gelo forte o suficiente para nos suportar, que eles chamavam de “good ice”. O processo de parada do navio, descida de escada, instalação dos observadores com os rifles (para o caso do urso polar aparecer) e da descida dos equipamentos para o churrasco levou algo em torno de duas horas. Desconfio que essa demora serviu também para que as rachaduras na placa de gelo se solidificassem, pois o navio ficou completamente preso. Era possível chegar até o casco do navio e tocá-lo, de pé sobre o gelo. Apenas atrás do navio ficou uma piscina de água e gelo, que aos poucos também foi congelando. Aliás, nessa piscina os mais arrojados mergulhariam. E acredite, foram muitos…

Quando desci a escada do navio em direção ao gelo, meu coração bateu mais forte. O que eu estava fazendo naquele momento, poucos homens fizeram. Ou farão. Eu estava prestes a colocar meus pés sobre o Pólo Norte. Fui direto para o totem que o pessoal do navio instalou e bati a foto que vai ficar pra minha história. Naquele momento, qualquer outro lugar sobre a superfície do globo terrestre estaria ao sul. Ninguém estava mais ao norte do que eu! E não havia mais norte além daquele ponto onde eu estava! Era o norte absoluto.

O pessoal fez a maior festa. Todo mundo tinha uma bandeirinha, um bonequinho, um logotipo ou algo para mostrar no momento da foto. Eu devia ter trazido uma bandeira do Corinthians. Mas esse Corinthians que aí está não é o meu, não merece. Melhor ficar como ficou: eu e eu.

Comecei a andar por ali. Como é difícil… Você caminha sobre o gelo que tem sobre ele uma camada de neve. E de repente afunda a perna até a coxa na neve, para logo em seguida pisar num local alto. E pra todo lado, blocos de gelo. Não é uma superfície lisa. Por isso, os caras que vêm para cá com trenós, penam. Eles têm que passar por todos esses obstáculos nas centenas de quilômetros que devem seguir até chegar aqui.

E nós, naquela manha, com churrasco e tudo.

Outra coisa que chamou a atenção: a rapidez com que o tempo deteriora-se nesta região. Em questão de minutos uma cerração desceu sobre nós, enfraquecendo o sol e apagando o navio. E não tínhamos nenhuma proteção. Imagine se o tempo vira de vez e começa a ventar e cair a temperatura mais ainda? Tinha acabado o churrasco…

Olha, cada vez que escrevo sobre o churrasco me dá um nó na alma. Desculpe voltar ao assunto, mas cada segundo que passei ali admirei mais ainda os heróicos pioneiros que andaram por estes lados quando não existia a energia atômica. Eu li muita coisa sobre eles ao longo dos últimos anos, por isso essa consciência de que – de certa forma – eu não estaria honrando suas memórias ao participar de um prosaico churrasco no Pólo Norte. É como que uma banalização da história, sacou? De um lado o orgulho por estar lá, de outro uma certa vergonha ou até remorso por estar lá daquele jeito.

A sensação de exposição ao tempo é algo curioso. Mostra como somos frágeis, como o ser humano não foi feito para ser largado na natureza. A gente só sabe da importância de um abrigo quando o vento bate por todos os lados. Tentando escapar do vento frio lembrei-me de quando, protegidinho na minha cabine, eu vi os rastros dos ursos polares e imaginei como é que um mamífero podia viver num lugar daqueles?

Aí ouvi o barulho de um chute. Os russos da tripulação trouxeram uma bola de futebol, fizeram ali as marcações dos gols e começaram a jogar uma partida. Bem disputada por sinal. Aos poucos foram tirando os agasalhos e logo a turma toda se matava de correr atrás da bola que era jogada pra lá e pra cá pelo vento.

No momento que me preparei para descer até a neve, vi dois russos chegando para descer também, mas os dois em trajes de banho. Calção, sem camisa, com uma sandália. Um deles levava duas bandeiras.

O povo agrupou-se próximo do lago formado atrás do navio. Baixaram uma escada daquelas de piscina e pronto. Estava formada a confusão. Várias pessoas foram chegando, tirando a roupa e formando uma fila. Um cinturão era passado por suas cinturas e um dos russos segurava a corda presa a ele. A pessoa então chegava na beirada da escada e saltava para dentro da água, em meio aos blocos de gelo. Trinta segundos depois subia correndo. Alguns arriscavam umas braçadas, era uma festa. Olhei bem aquilo, avaliei o antes e o depois. E preferi ficar no meu quentinho. Ta certo, seria uma experiência única na vida, mas acho que existem outras experiências que valem mais a pena. Mergulhar naquele tanque semi congelado não estava em meus planos. Mas que era engraçado ver a turma mergulhando, era!

Aí chegaram os chineses…

Tinha uma turma de oito chineses no grupo. Era um grupo de amigos, divertidos, que realmente tiraram todo o proveito da experiência de vir ao Pólo. Munidos de todos os tipos de máquinas fotográficas, com bonequinhos das olimpíadas e falando alto, o grupo estava sempre unido e divertindo-se. Ora estavam todos fotografando o navio, depois fotografando-se na frente do marco, depois com bandeiras e cartazes, e fazendo aquela algazarra. Eram seis homens e duas mulheres. Quando os russos começaram a recolher a escada e o material usado no mergulho, os chineses resolveram que era hora deles mergulharem. E lá foram eles. Eu fui junto, pois não podia perder a oportunidade. O russo que vinha carregando a escada, quando viu os chineses deu um grito, abriu os braços e abraçou o primeiro chinês. Entenderam-se em segundos e pronto! O circo estava armado outra vez. Divertidíssimo. Dois chineses tiraram as roupas, ficaram com seus calções de banho e… chuá… pra dentro da piscina! Saíram aos gritos enquanto todo mundo ria. Muito divertido. Mas precisa ser meio louco mesmo…

Resolvi caminhar um pouco mais e logo cheguei no limite de nosso campo. Olhei para o segurança e ele me acenava para que eu não fosse mais adiante, pois sairia de seu ângulo de visão. Se o urso aparecesse por ali, seria eu e o bicho, o que não era necessariamente uma opção agradável. Mas ali, no limite de nosso campo, deu pra olhar para o horizonte e imaginar como seria uma caminhada de dias, semanas ou meses naquele ambiente. Fiquei só na imaginação. Em vários dos livros que li, estava bem claro que não existe esforço físico ou psicológico maior do que seguir num trenó por aquelas paradas.

Muito bem. Hora do churrasco. Os caras armaram uma bela estrutura, com churrasqueiras a carvão e logo estávamos na fila. Carnes de todos os tipos, saladas e bebidas. Tomei uma cerveja ali mesmo. Talvez tenha sido a cerveja mais fria da minha vida! E desceu que foi uma beleza…

O problema é que, com uma temperatura de zero grau e um ventinho baixando-a para três ou quatro negativos, todo mundo tinha que comer rápido. Coloquei duas salsichas e dois pedaços de carne no prato e não deu tempo de comer um deles, que esfriou em menos de um minuto…

Churrasco, vôo panorâmico de helicóptero, massagem a bordo, barmen, DVDs no quarto, navio atômico. Essa não é propriamente uma aventura, mas uma viagem de gente rica mesmo. Pois até o nosso artista a bordo aproveitou para fazer algumas instalações relacionadas à proteção ao meio ambiente. Uma delas, muito interessante um círculo dividido em 360 graus, cada grau com o nome de um animal em extinção. E uma outra instalação com sapatos femininos. Eu não estava lá quando ele montou e não sei o que quer dizer. Mas não tinha como não reparar. Olha só:

Permanecemos cerca de 6 horas no gelo. Subi para minha cabine por volta de sete horas da noite e eu estava gelado. Os pés já reclamavam, pois as botas de borracha protegem da umidade mas deixam o frio passar que é uma beleza… Mais tarde, já com o navio em movimento, quando me joguei na cama ouvi nos alto falantes o pessoal dizer que haviam localizado uma foca. Quase levantei pra ver, mas eu estava tão quentinho… De qualquer forma, eram já cerca de meia noite e o sol explodia lá fora. Tratei de tentar dormir, o que não acontece mesmo. Fiquei pensando na vida até mais de três da manhã. Para ser acordado às sete e trinta com o aviso de que novos vôos panorâmicos iam acontecer. Mas as minhas costas…

30.06.2008: 87º 32’ N – 52º L – INDO PARA O SUL EM DIREÇÃO AO ARQUIPÉLAGO FRANZ JOSEF ISLAND.

Levantei mal das costas. Já são dez dias dormindo em camas que não são a minha. Hoje a coisa pegou. Levantei tão mal que decidi que não ia pagar o mico de ficar na fila para um novo vôo panorâmico que foi decidido diante do tempo bom que fazia. Era muito esforço para ficar torto numa janelinha e conseguir as mesmas fotos do mesmo navio no mesmo gelo. Preferi um programa mais agradável: uma hora de massagem. Paguei, é claro, 65 dólares para ver se o Sacha me aliviava as dores e de certa forma ele conseguiu. Aliviou. Não eliminou. Mas pelo menos a coisa ficou um pouco mais suportável.

Depois da massagem fiquei na biblioteca escrevendo até a hora do almoço. Depois arrisquei assistir outra palestra: dessa vez sobre Fritjof Nansen, um dos grandes – se não o maior – exploradores do ártico. Como as outras palestras, a apresentadora fala rápido demais, não se preocupa com o fato de haver gente do mundo todo ali, que tem dificuldades em seguir o inglês metralhado deles. Na verdade, esse pessoal passa a impressão de que não está curtindo fazer a palestra, mas quer que ela acabe o mais rápido possível. A mulher chegou a engasgar duas vezes com sua metralhadora verbal…

Nos alto falantes um aviso. Hoje é dia de jantar de gala e depois, dança… “Dress accordingly”diz o aviso, “vista-se de acordo”, porra. Eu com meu figurino de explorador da zona norte… e no meio desse monte de velhinha e velhinho. Não vai dar certo. Hoje é outra noite pra adiantar a leitura do “Ice Blink”, o livro que conta a história da Expedição Franklin ao Pólo Norte em 1846 e seu desfecho com mais de 130 mortos.

Ontem filmei os chineses mergulhando na água gelada.

Hoje quando subi para a biblioteca encontrei-os como sempre reunidos, com seus laptops abertos e olhando as fotos. Fui até eles com o pendrive e expliquei que eu tinha ali dois filmes para eles. Ficaram encantados, vieram todos olhar e copiaram o vídeo. Me encheram de “thank you”com o sotaque deles. Algum tempo depois o chinês que aparecia no vídeo veio me procurar para agradecer, junto com outro chinês que fala inglês. Adoraram o filminho. Na conversa fiquei sabendo que eles são de vários lugares, Beijing, Shangai e uma cidade no sul da China, próximo do Vietnan. Um deles – na verdade uma das chinesas – planeja ir para o Brasil no final deste ano, para conhecer a Amazônia. São umas figuras mesmo, estão curtindo cada segundo da viagem, em grupo. Uma das chinesas, Iang, disse-me que quer conhecer o Brasil pois em breve quem mandará no mundo serão o Brasil, a Rússia, a Índia e a China. Eu disse “o BRIC, não é?”. Ao que ela respondeu “golden BRIC”. Que ótimo.

Os chineses são infinitamente mais interessantes de conhecer do que os americanos e os ingleses. Pelo menos não tem nenhum traço daquela arrogância, sabe? A arrogância dos ingleses tem a ver com quem já foi um dia o dono do mundo. Eles têm uma certa empáfia. Nada que seja muito agressivo, mas parece sempre que eles são a realeza e nós os plebeus. Já a arrogância dos norteamericanos é a de quem é o dono do mundo. São legaizinhos, mas mesmo que morem no interior de Ohio, trazem consigo aquele lance de “America”que meio que encheu o saco. Meus 26 anos de convívio com os caipiras de Ohio na Dana bastou para conhecer de longe a empáfia dos bichos.

Um exemplo: uma das palestras que assisti foi com a Kara, que tratou dos Ursos Polares. Ela mostrou os esforços que estão sendo feitos pelos países onde existem Ursos Polares (Canadá, Rússia, Dinamarca, Estados Unidos), como proibição de caça de fêmeas, redução da quota de animais que podem ser caçados, criação de reservas, moratória para caça, etc. Ao final ela perguntou: E os EUA? Nada? E disse que os EUA são o único país que ainda não preparou uma legislação tão específica e rigorosa como os demais. No final da palestra, na seção de perguntas e respostas, um estadunidense pediu a palavra para dizer que os EUA fizeram isso e aquilo e que ela não podia dizer “Nada”, que isso passava uma impressão injusta sobre os EUA, e blábláblá. Botou a moça numa saia justa, ela teve que sair de mansinho com o tradicional e hipócrita “I appreciate your comments” mas eu moro no Alaska e esse tema está sempre presente, etc e tal. Achei o comentário do sujeito uma demonstração clara da arrogância dos estadunidenses que jamais aceitam estar errados. O cara deve ser outro “bushista”. Comentei isso com uma das passageiras – estadunidense – e ela disse ter ficado envergonhada com o comentário do sujeito. Assim são alguns deles, normalmente os que detêm o poder…

01.07.2008: 83º 34’N – 48º 07’ L – NAVEGANDO ATRAVÉS DO GELO, EM DIREÇÃO AO SUL. PEGADAS DE URSOS POLARES.

Na noite de ontem teve jantar especial e depois uma noite de gala com dança e bar. Não fui. Eu não trouxe roupas para essas coisas e me sentiria deslocado. Peguei o computador e fiquei no bar trabalhando. Logo chegaram várias outras pessoas que também não estavam dispostas a dança e tal. Sentamos todos ali para conversar e conheci então o Ed.

O Ed é de Rod Island, nos EUA. Reparei nele desde o aeroporto de Helsinki, pelo jeitinho cuidadoso de andar, os movimentos vagarosos, que denunciam a idade avançada. Em muitos momentos ele me lembrou de meu avô Duarte. Olhos azuis profundos, um quase sorriso o tempo todo e a carequinha. O Ed tem 85 anos de idade. E veio para a viagem sozinho, pois sua esposa não se locomove mais muito bem, de acordo com ele “perdeu o balanço”. Então ele viaja por conta própria. Fascinante! Contou de sua vida, tomou dois cálices de rum e disse que até dançaria algumas valsas, mas deixou os sapatos de dança em casa… Além de tudo o velhinho é bem humorado.

Bem humorado como o Dave, o inglês que acabou tornando-se meu amigo. Entendo metade do que ele fala, mas nos damos bem. É uma figura, sempre fazendo palhaçadas e demonstrando muita cultura. Sentamos sempre juntos para as refeições e me divirto com as pessoas que também sentam e que não conseguem entender o que ele fala. O desgraçado começa falando alto e vai baixando e metralhando com um puta sotaque inglês. Diz ele que é de propósito, assim as pessoas prestam atenção nele e o alimentam…

Bem, por causa da festa de ontem hoje acordamos mais tarde, para um “brunch”, que é aquele café da manhã mais tarde e mais reforçado dos gringos.

Após o almoço tivemos outra palestra, dessa vez mais interessante, com a Prisca, tratando de “blogging”. Eles criaram um blog para a viagem, dentro do site da Quark, mas não sabiam como estava, pois não temos acesso à internet. De qualquer forma, a Prisca introduziu o tema “blogging”para um platéia onde a maioria mal sabe navegar na internet. Foi legal. No final assumi o compromisso de entregar a ela um post em português e inglês para ela publicar no blog. Fiz algo simples, e está lá, no HTTP://blog.quarkexpeditions.com/

No mais, navega, navega, navegar. Nunca pensei que veria tanto gelo em minha vida!

Fui deitar e por volta de uma da manhã o altofalante avisou: POLAR BEAR! Opa! Todo mundo levantou e fomos correndo para a proa do navio. Quando cheguei já estava aquela muvuca mas consegui me acomodar bem e comecei a fotografar. Lá estava um ursão, lindo, andando em sua característica câmera lenta. Os ursos polares na verdade não são brancos. São amarelos. O que fica ainda mais destacado sobre o fundo de gelo branco. Era a primeira vez que eu via um Urso Polar em seu habitat natural. E o termo para definir é um só: majestático. Parece um rei. Dominando a região. Anda devagar, pesado. É impressionante.

O navio parou e vi que o urso nem deu mais bola para nós. Estava caminhando, quando repentinamente parou. Eu ainda estava me acertando com a máquina fotográfica. O urso parou, ficou olhando fixo para um ponto e não se mexia.

Então parei de fotografar para acertar algo na câmera ou me posicionar, não lembro. Foi uma fração de segundo. Quando olhei no visor novamente o urso já estava com uma foca nos dentes.

Aconteceu comigo e com a maioria das pessoas. Ninguém se tocou que o urso estava à espreita de uma foca, pois ele estava andando por ali, como se estivesse apenas passeando.

Um passageiro, um médico indiano, da janela de sua cabine conseguiu filmar tudinho: o momento em que o urso prepara o bote e retira a foca de seu buraco de respiro. Foi uma sensação. E de repente eu tinha diante de mim um urso com uma foca entre os dentes. Ele tratou de afastar-se do navio. A bióloga explicou depois que tratava-se de um urso jovem, por isso tentou afastar-se para comer a foca num lugar mais tranquilo onde não houvesse a ameaça do navio. Se fosse um urso mais experiente teria comido a foca ali mesmo.

Mas conseguimos acompanhar o bicho e o que eu – e mais uma pá de gente – consegui foi uma inesquecível série de fotos do urso carregando a foca e parando para um banquete na neve.

Tudo que eu havia visto nos documentários em DVD estava acontecendo ali, ao vivo, em minha frente. O pessoal mais experiente do navio disse que o que vimos foi raríssimo, pois a tocaia do urso costuma demorar muito. Vê-lo tocaiar, capturar a foca e depois comê-la é coisa que pouca gente viu…

As fotos ficaram ótimas. A seqüência do banquete do urso é maravilhosa, com o vermelho do sangue tingindo a neve e os pelos do urso. Inesquecível.

Foi o assunto da noite, o assunto do dia seguinte, o assunto da viagem. Veríamos mais uma porção de ursos polares, mas o show quem deu foi esse primeiro…

A impressão que tive foi de que a viagem ganhou outra dimensão. A rotina da navegação no gelo foi quebrada e o surgimento e a performance do urso foram perfeitos. O bicho só apareceu depois que estávamos cansados de ver pegadas pra todo lado. E apareceu para nos presentear com uma lição de como a natureza funciona. Inesquecível! Voltei pro quarto e corri separar as fotos boas. Cada foto…

02.07.2008: 81º 12’N – 55º 24’ L – OS SHOWS DOS URSOS POLARES.

Visitando Cape Norway e Jackson Island no arquipélago de Franz Josef Land

Ainda excitados com a performance do urso na madrugada, estávamos todos no café da manhã. O dia prometia, pois estávamos chegando ao arquipélago de Franz Josef Land, que foi descoberto em 1873 por Karl Weyprecht e Julius Von Payer que faziam parte de uma expedição Austro-Hungara que tentava chegar ao Pólo Norte. Depois de uma curta exploração eles tiveram que abandonar seu navio, o Tegetthoff, e remar pequenos botes por cerca de 640 quilômetros até a ilha de Novaya Zemlya, onde foram salvos. Todas as histórias por aqui são assim…

Depois de explorar algumas ilhas os exploradores deram ao arquipélago o nome do imperador da Áustria, Franz Josef, sabe como é…

Nós desembarcaríamos num lugar chamado Cape Norway, em Jackson Island. Neste lugar, em agosto de 1895, Fridtjof Nansen e Hjalmar Johansen chegaram após voltar do ponto mais ao norte até então alcançado pelo homem: 86 graus e 14 segundos. Hansen eJohansen haviam deixado seu navio, o Fram, que estava preso no gelo, para tentar chegar ao Pólo Norte em trenós. Após descobrirem que enquanto andavam para o norte, a placa de gelo sobre a qual eles estavam flutuava para o sul, desistiram e começaram a voltar para casa no que se tornou uma das mais fascinantes histórias de sobrevivência no ártico.

Pegamos o helicóptero de descemos em Cape Norway. Nessas trasnferências para as ilhas, o helicóptero carregava cerca de 20 pessoas. Ao descer um dos integrantes da Quark nos aguardava para instruções sobre o havia para ver e como nos comportar na ilha.

A primeira coisa a surgir foram os restos do que foi o abrigo que Nansen e Johansen construíram para permanecer naquela ilha por dez meses. Eles cavaram um buraco de cerca de um metro de profundidade e ergueram paredes de pedra com cerca de um metro também. Sobre elas conseguiram colocar um tronco da única árvore que havia na região. Mataram algumas walrus e com sua pele fizeram uma cobertura. O buraco está ali, as paredes já caíram mas o tronco permanece atravessado sobre a cova. Fascinante saber que aquilo salvou a vida dos dois…

Um monumento ali ao lado com uma placa indica o local e dá os nomes dos exploradores envolvidos.

Nansen e Johansen saíram de Cape Norway em maio de 1896 e chegaram até Cape Flora, em outra ilha – no lugar certo, na hora certa – onde, num golpe de sorte que entrou para a história, deram de cara com uma expedição que os resgatou. Nós iríamos até essa ilha também.

Andar por aquele lugar é fascinante. Mas imaginar que os caras pudessem passar dez meses ali, com o conforto que a tecnologia de 18 e abobrinha permitia… É inacreditável.

Ao descer do helicóptero, pisei pela primeira vez na tundra do ártico.

A tundra é a superfície das ilhas, que surge quando acontece o degelo do verão. Uma camada do solo – chamada de permafrost – a cerca de um metro abaixo da superfície, está permanentemente congelada. Mas acima, quando o gelo desaparece forma-se um tapete – e é isso que é mesmo, um tapete – de plantas, liquens, terra e outros componentes.

Você caminha sobre essa camada e é como se ela estivesse viva, como se fosse a pele da ilha. O pé afunda gentilmente e quando você levanta-o, o solo reassume a posição normal. Não fica aquela marca de pegada que fica na areia ou no gelo. Ao caminhar, parece que estamos andando sobre uma esponja, inclusive fazendo o barulho característico. É fascinante.

E as cores são maravilhosas. Vários tons de verde, ocre, vermelho e uma espécie de roxo, compõe um quadro lindo de ser visto.

Os cientistas dizem que essa tundra, ao ser exposta ao sol, emite uma serie de gases que também contribuem para o aquecimento global. E essa tundra cobre uma região imensa do ártico, praticamente todas as ilhas e regiões de continentes que são cobertas por gelo no inverno. De qualquer forma, o que ficou nítido ali é que essa tundra deve ser um solo fértil para qualquer tipo de plantação. Se o gelo desaparecer, essas terras valerão muito. Por isso a briga que sempre aconteceu por ali. A Rússia já pediu para ser reconhecida como dona de grande parte do território, coisa que a Dinamarca contestou. E isso ainda vai longe…

No mais, gelo, pedras, ossos, pedaços de madeira e de metais enferrujados pra todo lado. É essa a paisagem dessas ilhas. Que em sua estranheza, inospidez e dureza, é de uma beleza estonteante.

No paredão de pedra, centenas de pássaros fizeram seus ninhos. Os pássaros migram das regiões equatoriais e tem cerca de 80 a 90 dias para acasalar, botar, criar os filhotes, ensiná-los a voar, mergulhar e se alimentar. Em agosto todos vão embora e tudo aquilo fica vazio até o próximo verão. O senso de navegação dos pássaros é fantástico e os cientistas acham que eles usam o sol e os campos magnéticos para orientação. Os filhotes, já maduros, vão retornar para a mesma pedra onde nasceram, a milhares de quilômetros de distância.

Nessa e em todas as outras vezes em que descemos para terra, primeiro é feito um vôo com o pessoal técnico. Entre eles, três agentes de segurança, que trabalham para a agência do governo que sucedeu a famosa KGB. Eles acompanham toda a viagem, zelando por nossa segurança e pela deles também. Nosso navio é um petisco para um atentado terrorista, por exemplo. Um navio russo cheio de turistas ricos, na maioria norte-americanos, que tal?

Mas nas ilhas a função dos seguranças é a mesma daquela do churrasco: estabelecem um perímetro além do qual os passageiros não podem ir. Os seguranças, seus rifles e revólveres são a garantia de que nenhum urso polar vai nos atacar. Mas a perspectiva é assustadora…

Á noite sentei no bar do navio com os seguranças russos. Um deles falava inglês bem rudimentar e traduzia a conversa para os outros dois. Quando perguntados sobre a função que desempenham, eles responderam mais ou menos assim: – Nós torcemos para que os ursos apareçam quando vocês estão no navio. Se aparecerem enquanto estamos nas ilhas, será ruim para os passageiros, ruim para nós e ruim para os ursos…

A perspectiva de estar num lugar inóspito, cercado de pegadas dos ursos polares, é algo que nós, os ocidentais civilizados não temos. Estamos ali à disposição do maior predador carnívoro do mundo. Um deles pode aparecer de repente e, se estiver faminto, resolver almoçar um de nós. Essa possibilidade está além de nossa capacidade de compreensão.

Eu mesmo ficava apreensivo enquanto andava pela ilha. Olhava para os lados, sempre à procura do predador. Esquisito…

Quando voltamos ao navio para continuar a viagem, outro urso polar surge. Dessa vez uma ursa, com dois filhotes. Estávamos com sorte! Conforme os biólogos os filhotes deveriam ter cerca de 4 meses de idade. E divertiam-se na neve como só sabem fazer as crianças.

As estatísticas dizem que em média apenas um dos dois chegará à idade adulta. Vendo aquele lugar é difícil imaginar como é que ele consegue sobreviver!

03.07.2008: 80º 20’ N – 52º 44’ L – O SHOW DOS PÁSSAROS EM RUBINE ROCK

A Estação-fantasma de Setova na Baia de Tikhaya em Hooker Island. Cape Flora em Northbrook Island.

Hoje o dia começaria com nossa chegada a Rubine Rock, uma pedra gigantesca onde milhares de pássaros fazem seus ninhos.

O navio praticamente encostaria na rocha e então veríamos de perto algo parecido – em maiores proporções é claro – do que eu vi quando estive num ninhal no pantanal do Mato Grosso. E não deu outra. A rocha é muito alta e grande, de origem vulcânica e feita de pilares de basalto, que foram torcidos horizontalmente, formando nichos perfeitos para a construção de ninhos. E além disso, de difícil acesso para os predadores.

Era natural que as aves escolhessem esse lugar para procriar a cada verão.

O som é fortíssimo, milhares de aves voando por todo lado. Uma festa de vida.

Logo em seguida fomos para Tikhaya Bukhta, em Hooker Island, outro lugar histórico. Ali o explorador russo Georgy Sedov passou o inverno entre 1913 e 1914. E foi ali que os russos construíram a primeira estação polar em 1929, que foi fechada em 1963. Monumentos e alguns túmulos marcavam o lugar.

No caminho, outro urso polar surge. E o navio o acompanha por um bom tempo.

Eu já tinha visto ursos polares em zoológicos. Mas vê-los ali, em seu ambiente, saber que são feras selvagens e estão a alguns metros de distância é fascinante.

Pouco depois surge lá na frente um grupo de morsas. Não deixaram que chegássemos muito perto, mas deu pra ver que elas estavam se divertindo.

Pois bem logo estávamos prontos para um novo desembarque. Sempre barulhento, o vôo para a ilha foi tranqüilo. E aqui cabe falar um pouco do helicóptero.

Todo navio quebra-gelos tem pelo menos um helicóptero. Eles são um equipamento imprescindível para fazer as sondagens do gelo e determinar a rota mais fácil para o navio abrir seu caminho. Em nosso caso era um helicóptero russo, evidentemente, com capacidade para 20 passageiros, piloto e co-piloto. Conforme o pessoal técnico, trata-se de uma máquina poderosa e muito bem construída, pilotada por alguns dos mais experientes aviadores russos. De fato, o bicho era grande. Mas os caras bem que podiam dar uma lavadinha nele, não é? Essa é a diferença entre os norte americanos e os russos. Numa viagem como a nossa, se totalmente operacionalizada pelos norte americanos, o helicóptero podia até ser velhinho, mas estaria brilhando. O russo não: é velhinho e eles fazem questão que pareça velhinho. Sujeira pra todo lado, remendos, amassados… aquelas coisas tão, tão… brasileiras, sabe? Desleixo mesmo, de quem é extremamente pragmático. Funciona, então ta bom. Nada de gastar com frescuras.

Pois a cada vôo eu sentia mais falta daquelas frescuras que nos dão a sensação de que quem cuida, cuida bem. Sabe? O metal brilhando, as cores firmes, a fuligem retirada, a limpeza impecável… aquelas coisas que geram custos e que ninguém sabe pra que servem. Pois é…

Descemos na área de pouso, de onde era possível ver os prédios de madeira da velha estação abandonados. E a tal estação não era pequena, não. Por onde andávamos, pedaços de equipamentos enferrujados, parafusos, fios, caçoas de vidro, latas, barris, peças elétricas. São 45 anos de abandono, com a neve encobrindo parte da estação e inclusive invadindo as casas de madeira. Andei por todo lado e fiz questão de entrar num dos predinhos, que era uma espécie de oficina. Vários equipamentos enferrujados e ali, no meio da sala, meio cobertos pela neve, uma mesa e uma cadeira… Quem terá sentado ali? Que histórias de vida terão passado por aquele lugar? Foram trinta e quatro invernos até os russos decidirem por fechar a estação. Um monte de histórias.

Lembrei-me das ruínas de uma pousada próxima do campo base do Aconcágua. Entrar num cômodo e velo cheio de neve dá uma sensação estranhíssima. Casas, prédios os abrigos construídos pelo homem, enfim, são como coisas sagradas. Nos protegem da natureza, do frio e da chuva. E quando não conseguem fazê-lo deixam a gente com uma estranha sensação de falta de proteção, dependendo de nossos frágeis corpos.

Ali em Hooker Island dá pra ver claramente como a natureza recupera aos poucos seu espaço. Os prédios – totalmente construídos de madeira – perdem a cor, ficam cinzas e são invadidos pela neve que derruba as paredes, tombam e vão sendo aos poucos destruídos pelo vai e vem da neve, pelo vento, pela chuva e pela ação dos anos.

Um imenso hangar foi construído para uso com balões. Fios e mais fios estão por toda parte, inclusive ainda fixados nas antenas antigas.

Falei com uma das coordenadoras da viagem, que estava um pouco emocionada. Aquela era a sétima vez que ela ia ao Pólo Norte e a terceira vez que descia naquela ilha. E me disse que era a primeira vez que fazia isso com tempo bom, sem ventos, sem neve. Estava encantada… e se ela estava, imagina eu… como é que ninguém ainda fez um filme nesse lugar?

Bem, explorei o lugar, vi os monumentos, andei pela neve por todo lado até chegar a hora de ir embora. Foi quando passei por um toilete antigo. Inacreditável…

Voltamos pro navio para almoçar e descansar para a próxima visita do dia, quando iríamos para Northbrook Island, outra ilha do arquipélago Franz Josef Land. Ali está o Cape Flora, ou Cabo Flora.

Foi ali que Nansen e Johansen foram protagonistas de um dos mais fantásticos lances de sorte da história, que merece ser contado aqui.

Em 1893 o norueguês Fridtjof Nansen liderou uma expedição ao Ártico com o objetivo de chegar ao Pólo Norte, coisa que ninguém tinha conseguido até então. Nansen era um de gênio inovador que concluiu que em vez de lutar contra a natureza o melhor seria aliar-se a ela. Ele desenhou um navio, o Fram ( que quer dizer “para a a frente”), com um casco especial que faria com que ele, ao ficar preso no gelo, fosse empurrado para cima. Em vez de ser esmagado como ocorria com os navios de então, o Fram assentaria sobre o gelo e ali permaneceria. A estratégia de Nansen era esperar que o gelo acompanhasse as correntes e passasse pelo Pólo Norte. Era uma viagem estimada de cinco anos, a maior parte dos quais preso no gelo.

Depois de um ano preso no gelo ficou evidente que o Fram não alcançaria o Pólo Norte ou se o fizesse seria num prazo muito maior que o estimado. Quando o Fram atingiu 86º 4’ Norte, Nansen decidiu, acompanhado de Hjalmar Johansen, deixar o navio e seguir a pé em direção ao Pólo. Foi uma decisão arrojada, pois eles sabiam que ao deixar o navio não conseguiriam mais retornar a ele. E a terra firme mais próxima estava a cerca de oitocentos quilômetros ao sul. Hansen e Johansen partiram em 14 de março de 1895, com três trenós, dois caiaques e vinte e oito cães. No dia 8 de abril de 1895 eles chegaram a 86º 14’ Norte, a latitude mais alta que o homem atingiu até aquela data. Foi então que Nansen confirmou algo perturbador: enquanto eles caminhavam para o norte, a cobertura de gelo sobre a qual eles andavam derivava para o sul. Era como se estivessem subindo uma escada rolante pelo lado em que ela desce. Nansen compreendeu que não conseguiria chegar ao Pólo Norte e decidiu retornar. Com base nos mapas da época eles tentaram chegar até algumas ilhas que estariam a 83º, mas descobriram que elas não existiam. Tinham sido miragens de antigos exploradores. Depois de usar seus caiaques para navegar pelo mar aberto em Julho de 1985 eles chegaram ao arquipélago de Franz Josef Land e desembarcaram num local que mais tarde ficou conhecido como Cape Norway, em Jackson Island. Ali construíram o abrigo cujos restos eu visitei e passaram o inverno alimentando-se de Morsas e Ursos Polares. Em maio de 1896 eles retomaram o caminho de volta, sem saber direito onde estavam, aportaram no local onde agora em estava: Cape Flora em Northbrook Island. Instalaram-se ali preparando-se para mais um inverno. No local havia uma pedra sobre a qual Nansen costumava ficar meditando.

Um dia Nansen ouviu o que pareciam latidos e caminhou na direção de onde vinham os ruídos. Deu de cara com Frederick Jackson, que liderava uma expedição que estava passando o inverno na ilha. As chances de que um encontro como esse ocorresse são remotíssimas. O arquipélago tem cerca de 191 ilhas. E o mais impressionante: Jackson conhecia Nansen. Quando se encontraram, Nansen parecia um animal selvagem, preto de fuligem , com as roupas engorduradas, meses sem tomar banho e queimado do frio e do vento. Mas Jackson o reconheceu. E eles puderam retornar para casa. Acredite ou não: uma semana depois que Nansen e Johansen chegaram em casa, seu navio Fram aportou com todos os tripulantes vivos. Nansen depois dedicou-se a causas humanitárias chegando a ganhar o prêmio Nobel da Paz.

As melhorias que ele fez nos equipamentos, vestimentas e no desenho dos navios foram decisivas para que nos anos seguintes outros exploradores conquistassem o Pólo Sul e o Norte.

Pois bem. Eu havia estado no local onde eles passaram aquele primeiro inverno. E agora estava onde eles encontraram Jackson. A cabeça viajou a milhão…

As paisagens são inacreditáveis. Andar pela neve é um problema, pois em alguns momentos chegamos a afundar a perna até a altura da coxa. Lembrei-me da aventura do Everest, com a diferença de que aqui eu estava a nível do mar. É outra neve, outro gelo, outro esforço.

Voltei para o navio com a alma lavada. Eu havia experimentado ao vivo e em cores e gelo algumas das sensações que Nansen e outros pioneiros tiveram em suas épocas. Havia estado lá, onde as coisas aconteceram. Havia visto a grandeza da natureza e seu poder sobre o homem. Não há dinheiro que pague. Não há palavras que expressem.

04.07.2008: 80º 06’N – 58º 18’ L – VISITA A CAPE TEGETTHOFF EM HALL ISLAND E WILCZEK ISLAND.

Na manhã do dia 4 fomos acordados com o aviso de que estaríamos mais uma vez visitando uma ilha. Desta vez Cape Tegetthoff em Hall Island. A primeira imagem é impressionante, com duas rochas na praia esculpidas pelo vento e pelo gelo num formato diferente que chama a atenção de qualquer ângulo.

O arquipélago de Franz Josef Land é composto de basalto vulcânico. O arquipélago tem quase 200 ilhas. As que localizam-se ao norte permanecem dentro da capa de gelo durante todo o ano. No verão o gelo retrai-se deixando as ilhas mais ao sul expostas ao sol.

Em janeiro as temperatura varia entre 15 e 10 graus abaixo de zero. Em julho a temperatura fica entre zero e dois graus acima de zero. Num período de trinta anos a temperatura mais alta foi de 13 graus e a mais baixa de 54 abaixo de zero. Deu pra sentir a pegada?

05.07.2008: 75º 54’ N – 45º 48’ L CRUZANDO O MAR DE BARENS

Muito bem, saindo do arquipélago de Franz Josef Land entramos no Mar de Barens, a caminho do porto de Murmansk e do final de nossa viagem. Em alto mar o quebra-gelos decidiu se comportar como um navio normal e pronto! No dia em que desci pra visitar a usina nuclear e os motores do navio tive maresia. Uma tontura, um enjôo que me deixaram fora do eixo. Um saco!

Mas nada disso impediu que eu apreciasse a maravilha tecnológica que é este navio. Tudo é gigantesco. A sala de controle da usina, os motores elétricos, a sala com as duas centrais de dessalinização. É tudo grande, bem cuidado e caprichado, contrastando bastante com as coisas mais, digamos, tradicionais como ônibus e helicópteros.

Na sala de controle um calendário sobre a mesa com uma foto de uma praia tropical maravilhosa. Pois é, queria o quê?

A maior parte do tempo passei em minha cabine, esperando que a maresia fosse

06.07.2008: 71º 44’ N – 36º 40’ L CRUZANDO O MAR DE BARENS

Conforme chegávamos mais perto da terra firme as gaivotas nos acompanhavam. E um dia decidiram que transformariam o helicóptero em poleiro. Olha só:

Uma das últimas palestras que tivemos tratou da questão da mudança climática e do aquecimento global. Confesso que sou absolutamente cético sobre esse assunto. Não discuto que uma mudança climática esteja em curso, mas sempre a entendi como um fato geológico. Inevitável. Sempre que o homem se meteu a teorizar esse assunto, quebrou a cara. Nos anos setenta passamos por algo parecido, quando os cientistas e a mídia juravam que estávamos caminhando para nova era glacial.

De certa forma o que nossa técnica no assunto – Susan Currie – explicou foi mais ou menos isso: o aquecimento global é um fato geológico. O problema é a velocidade com que ele vem acontecendo e aí teria a mão do homem. As atividades industriais e a constante agressão ao meio ambiente estariam acelerando a velocidade com que a temperatura está subindo. Daí nossa responsabilidade em minimizar esses efeitos. Muito bem. Todas as sugestões apresentadas sobre o que fazer para minimizar os efeitos são sugestões óbvias, relacionadas à ignorância do homem.

Um idiota que desperdiça água lavando a calçada, um imbecil que joga as garrafas de plástico no rio ou o criminoso que derruba uma floresta sem qualquer preocupação, sofrem do mesmo mal: ignorância.

E é então que surgem as tentativas de manipulação ideológica do assunto. Existe tema melhor do que a possibilidade de extinção da humanidade para defender este ou aquele sistema econômico ou político? Assim o aquecimento global virou arma de combate ao capitalismo, abraçado pelo discurso das esquerdas e pela mídia que adora espetáculos.

O resultado é que perdemos a noção de proporção e nos atiramos em busca de soluções gigantescas, maiores que o problema. Pior: soluções para os problemas errados. Dedicamos ao tema da moda, ao tema da mídia nossos esforços. Acreditamos em tudo que é dito, principalmente se o discurso for catastrófico.

Exemplo? Em março de 2008, pouco antes de minha viagem, topei com esta notícia:

Expert: Capa polar do Ártico pode desaparecer neste verão

A notícia trazia as declarações do Dr. Olav Orheim, chefe do Secretariado do “International Polar Year” na Noruega. Ele dizia que “a camada de gelo atingiu a baixa histórica de 3 milhões de quilômetros quadrados durante as semanas mais quentes do verão passado, enquanto cobria 7,5 milhões de quilômetros quadrados antes do ano 2000. Se a temperatura média da Noruega este ano ficar igual à de 2007, a camada de gelo que cobre o Ártico derreterá completamente e isso é altamente possível diante das condições atuais.” E o artigo continuava: conforme um relatório das Nações Unidas no ano passado, a temperatura média do planeta poderia subir até 6 graus centígrados até o final do século, causando sérios prejuízos para os eco sistemas em todo o mundo. Em seguida o artigo prosseguia falando da crescente exploração das rotas marítimas na região e suas conseqüências para a natureza.

Reparou no tom de alarme? Eu até fiquei meio assim… Me achando o cagado que quando consegue ir pro Pólo Norte não encontra gelo…

Nada do que foi dito no tal artigo pelo tal expert aconteceu. A camada de gelo estava lá, os animais estavam lá e quando perguntei a Susan sobre isso ela foi clara: o conhecimento levantado sobre a região não é conclusivo. Pelas projeções o mundo deveria estar esfriando e não esquentando. Mas não se sabe direito as causas nem as conseqüências. Ela deu então um exemplo, falando da capacidade que o planeta tem de refletir de volta para o espaço a luz do sol. Essa capacidade está diretamente ligada ao controle da temperatura e as regiões com maior capacidade de reflexão são justamente os pólos, cobertos de gelo. Se o gelo diminuir, diminui a capacidade de reflexão. Por outro lado, o gelo diminuindo contribuirá para aumento de evaporação das águas, que aumentarão as nuvens, que por sua vez aumentarão a capacidade de reflexão da luz solar, compensando o degelo. Pronto. Deu empate. E assim vai. Para cada argumento existe um contra-argumento. Os ursos polares estão morrendo? Pois existem dezenas de pesquisas demonstrando que a população de ursos está aumentando e que onde ela diminuiu foi justamente nas regiões mais frias. Outras pesquisas mostram que os caçadores matam 3 vezes mais ursos do que o aquecimento global, o que quer dizer que combater a caça aos ursos é três vezes mais eficiente do que combater o aquecimento global. E infinitamente mais barata. Mas pouco ou nada se fala sobre isso. E por aí vai.

Exageros, comportamento passional, medo, má intenção, manipulação ideológica, interesses comerciais, é isso que vejo em primeiro lugar na discussão do aquecimento global. E isso basta para que eu seja absolutamente cético sobre os dados que são apresentados pela mídia, mesmo em documentários que ganhem o Oscar. Estamos diante do novo Bug do Ano 2000, aquele terrorismo que enriqueceu muita gente e não deu em nada.

Mas como todo tema ideológico a questão das mudanças climáticas é quente (sem trocadilho) e vai gerar muita discussão e perda de tempo e recursos, sem conclusão.

Adicione o tema “aquecimento global” à mesma prateleira onde estão o criacionismo X evolucionismo; armamento X desarmamento, ciência X religião. É mais uma discussão sem fim.

As pessoas me perguntam o que mudou em minha consciência ecológica, em minha percepção sobre o aquecimento global com a viagem ao Pólo Norte e eu digo: nada! Fui um e voltei o mesmo. Mais encantado, mais assombrado, mais elucidado, mais deslumbrado com o que vi. Mas com as mesmas convicções de que estamos falando do resfriado em vez de tratar da pneumonia. E que tem muita gente interessada nessa falta de foco da discussão.

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